Otelo Saraiva de Carvalho

Otelo Saraiva de Carvalho

Comandante do COPOCON

In Revista TER 46

Há quinze anos, sendo diretor do jornal “O Povo da Barca”, propus aos meus colegas de direção que entrevistássemos Otelo Saraiva de Carvalho a propósito do aniversário do 25 de Abril. Abstendo-me, agora, de enumerar as peripécias – e tantas foram! – até que a entrevista se concretizasse, sendo publicada a 30 de abril de 2009, reincido na sua publicação (sem quaisquer alterações) por considerar que, nos 50 anos da Revolução, o seu interesse e significado histórico permanecem intocáveis.

Otelo Saraiva de Carvalho e Zeca Afonso

É uma das figuras mais controversas da História Contemporânea Portuguesa.

Nascido em Lourenço Marques (Moçambique) a 31 de agosto de 1936, estratega e comandante operacional do 25 de Abril, membro do Conselho da Revolução, comandante do COPCON, candidato presidencial em 1976 e 1980, preso e posteriormente indultado na sequência da sua alegada ligação às FP-25 de Abril, Otelo Saraiva de Carvalho divide opiniões.

Amado e idolatrado por uns, odiado e vilipendiado por outros, o que ninguém lhe pode negar é o lugar que, por direito próprio, ganhou na História de Portugal.

Numa altura em que passam 35 anos sobre o 25 de Abril de 1974, “O Povo da Barca” entrevistou-o.

Aprazada para durar quinze minutos, a conversa prolongou-se por bem mais de uma hora, resultando numa entrevista que, com toda a certeza, ficará para a História do jornal.

 

“O Povo da Barca” (P.B.) – Há 35 anos, o que levou o então jovem major Otelo Saraiva de Carvalho a aderir ao Movimento dos Capitães, ciente que estava, seguramente, dos riscos que corria?

Otelo Saraiva de Carvalho (O.S.C.) – É conhecido que na origem do Movimento dos Capitães se encontra a guerra colonial, sobretudo o sue doloroso arrastamento. Sem a guerra não haveria o 25 de Abril. O Movimento começa por corporizar uma reação ao Decreto-Lei 353/73 que, ao possibilitar aos milicianos do Quadro Especial de Oficiais ultrapassarem os Capitães do Quadro Permanente mediante a frequência de um curso intensivo na Academia Militar, equiparado aos cursos normais, criava uma situação de grande injustiça.

As nossas reivindicações, os sucessivos manifestos que apresentámos, levaram à suspensão do Decreto, em outubro de 1973, e, em novembro, à demissão do Ministro do Exército e da Defesa Nacional, Sá Viana Rebelo.

P.B. – No entanto, embora começando por assumir reivindicações de carácter corporativo, o Movimento acabou por assumir um carácter político. A partir de que momento se verifica essa evolução?

O.S.C. – A indecisão por parte do Governo, a própria ausência de processos disciplinares, fizeram com que ganhássemos a consciência da sua fragilidade e da nossa força. A partir da revogação do Decreto e da demissão do Ministro, tem início a segunda fase do Movimento dos Capitães. Oficiais das Forças Armadas e das Força Aérea passaram a fazer parte e o derrube do Governo é assumido como objetivo. Era nossa intensão apresentar reivindicações crescentemente mais duras, mais difíceis de concretizar, de tal forma que o Governo, pela demonstração da sua incapacidade, acabasse por cair. Essa situação irá manter-se até 16 de março de 1974.

 

P.B. – Quando se dá a chamada intentona das Caldas.

O.S.C. – Exatamente. Estive envolvido, não resisti à empatia com alguns camaradas e ao seu voluntarismo e deixei-me arrastar por essa aventura. Mas essa intentona foi um passo decisivo rumo ao 25 de Abril. A reação das forças governamentais inspirou-me para a estratégia que, posteriormente, seguiríamos. É curioso que, a 16 de março, não fui preso por segundos por uma Brigada da PIDE/DGS.

 

P.B. – A intentona das Caldas foi, então, fundamental?

O.S.C – Para além da importância no plano militar, que já referi, permitiu-nos sair da ambiguidade em que nos encontrávamos, da convicção de que água mole em pedra dura acabaria por furar. Na altura, foram presos 200 camaradas. Na reunião da Comissão Executiva Coordenadora, a 24 de março, fiz um mea culpa e assumi a responsabilidade da ordem de operações do 25 de Abril. O devolver à liberdade os camaradas presos era um dos objetivos. A 25 de Abril, derrubaríamos o regime fascista e devolveríamos a liberdade ao povo português.

 

P.B – Em que momento do 25 de Abril sentiu que a vitória do Movimento das Forças Armadas era irreversível?

O.S.C – O momento decisivo, também pelo seu dramatismo, é, sem dúvida, a rendição de Marcelo Caetano.

Mas há um acontecimento prévio de grande importância militar e simbólica: quando, no Terreiro do Paço, Forças da Cavalaria 7 e Lanceiros 2, comandadas pelo Brigadeiro Junqueiro dos Reis, se opõem a Salgueiro Maia e este se dirige sozinho, com uma granada na mão, aos carros de combate que, às sucessivas ordens do Brigadeiro Junqueiro para que disparassem, não dispararam. Os soldados não obedecem. Aliás, grande parte da coluna passa para o nosso lado. Atrás de Salgueiro Maia, nessa altura, havia uma enorme multidão de civis. O povo português, ao vir para a rua, manifestou-nos inequivocamente o seu apoio.

 

P.B. – Importa-se de pormenorizar um pouco o momento da rendição de Marcello Caetano?

O.S.C. – O Spínola telefonou-me para o quartel de Engenharia 1, na Pontinha, onde estava instalado o comando operacional. Disse-me que havia recebido uma mensagem de Marcello Caetano, pedindo-lhe que fosse ao Quartel do Carmo receber das suas mãos o poder. Acrescentou que tinha dito ao presidente do Conselho que nem pegava em armas, nem tinha nada a ver com o Movimento e perguntou-me se queria ir eu assumir o poder ou se o mandatava para essa missão. Respondi-lhe que se considerasse mandatado pelo Movimento para receber o poder.

 

P.B. – Versões desses momentos dramáticos vividos no Quartel do Carmo acentuam a estrema dignidade de Marcello Caetano. Confirma essa postura?

O.S.C. – É, de facto, a versão que me chegou. Foi sóbrio e digno, pedindo que o tratassem com a dignidade que julgava merecer. Pela nossa parte, tentámos a todo o custo evitar a possibilidade de um encontro com a multidão. Marcello, juntamente com os Ministros Moreira Baptista e Rui Patrício, acaba por ser transportado para a Pontinha, a bordo da chaimite “Bula”, a salvo de qualquer problema.

 

P.B. – Teve sempre confiança na vitória?

O.S.C – Uma grande confiança. Poucos dias antes do 25 de Abril, em casa de Hugo dos Santos, tinha garantido a este e a Vítor Alves que venceríamos. É curioso que Hugo dos Santos começou por ser contrário ao plano de operações que elaborei.

 

P.B. ­– Porquê?

O.S.C – Considerava que deveríamos reunir as Forças num campo aberto e protegido, por exemplo, no campo de instrução militar de Santa Margarida. Fui contra. Mesmo que a Força Aérea se recusasse a bombardear-nos, havia a possibilidade de o fazerem aviões espanhóis, ao abrigo do Pacto Ibérico. Por outro lado, ficaríamos vulneráveis face à possibilidade de haver corte de mantimentos, de energia… Como resistiríamos a esse corte total? Vítor Alves acabou por concordar comigo e perguntou-me que percentagem de sucesso teríamos com o meu plano.

 

P.B. – O que lhe respondeu?

O.S.C. – Que tínhamos 80% de hipótese de vitória, o que o deixou encantado. Perguntou-me qual seria a alternativa, caso não saíssemos vitoriosos com o Plano de Operações que propus. Respondi-lhe que não havia alternativa. Que iríamos vencer, que em menos de vinte e quatro horas a vitória nos sorriria.

 

P.B. – Está a dizer que não havia um plano “B”, um plano alternativo em caso de derrota?

O.S.C. – Não havia. A elaboração da ordem de operações constituiu, da minha parte, um trabalho solitário. Recolhi, correndo grandes riscos, toda a informação possível sobre as forças adversárias, de forma a ter um conceito mais alargado das nossas hipóteses. Estava totalmente confiante na vitória.

 

P.B. – Do seu ponto de vista, quais foram as condições decisivas para o sucesso?

O.S.C. – Considero que houve quatro fatores que se tornaram decisivos: a confiança que o meus camaradas em mim depositaram; a confiança que neles depositei; o papel desempenhado pelo anexo de transmissões, permitindo o contacto permanente do Posto de Comando com as unidades e destas entre si; finalmente, o efeito surpresa.

 

P.B. – Houve mesmo um efeito surpresa?

O.S.C. – Mesmo depois da tomada de objetivos, em Lisboa, o Governo ignorava que a revolução estava na rua. Através do nosso serviço de escutas, surpreendemos uma conversa telefónica em que o Mistro da Defesa perguntava ao Ministro do Exército se estava tudo em ordem e este lhe respondia: “V. Ex.ª pode estar tranquilo. Durma descansado.” Transmitiram-me esta informação no segundo seguinte. Volto a referir: o papel desempenhado pelo anexo de transmissões foi de primordial importância.

 

P.B. – Também escutaram o telefonema de Silva Pais [nota da redação: Diretor da PIDE/DGS] para Marcello Caetano?

O.S.C. – Claro. Informava-o, às 05h45 da manhã, que a revolução estava em marcha. Marcello sugere que, tal como sucedera aquando da intentona das Caldas, irá para Monsanto, mas Silva Pais aconselha-o a ir para o Quartel do Carmo. Essa informação foi fundamental. Ficámos a saber onde Marcello estava. Como é sabido, ficará no Carmo até se render.

 

P.B. –Trinta e cinco anos depois, como vê o país? Como vê a situação política e social em Portugal?

O.S.C. – Com alguma insatisfação. O programa do Movimento das Forças Armadas assumia três grandes eixos: Democratizar, criando um regime democrático parlamentar; Descolonizar, buscando entendimento com os movimentos de libertação, auscultando-os no sentido de saber se pretendiam continuar ligados a Portugal, se queriam a independência; Desenvolver, aspeto importantíssimo do nosso programa, procurando elevar o nível social, cultural e económico das classes mais desfavorecidas. Considero que, em termos gerais, com maior ou menor dificuldade, evidentemente reconhecendo problemas e ambiguidades, os objetivos de democratizar e descolonizar foram cumpridos.

 

P.B. – Mas não o de desenvolver?

O.S.C. – Não totalmente. Nesse aspeto há, ainda, muito a fazer. As portas de esperança abertas com o 25 de Abril não foram integralmente concretizadas. Quando vejo um quinto da população em situação de pobreza, o desemprego acimo dos oito por cento, dez por cento de analfabetos, a corrupção… não posso estar satisfeito.

P.B. – Sente que Portugal reconheceu e reconhece o papel desempenhado pelos militares de Abril?

O.S.C – Aqueles que têm assumido responsabilidades políticas – Primeiros-Ministros, Presidentes da República – não deram ou dão mostras desse reconhecimento. Lembram-se de nós no 25 de Abril, mas, ao longo do ano, têm procurado esquecer-nos. Reparem que, logo após a revolução ter saído vitoriosa, demos o exemplo, distinguindo militares que lutaram contra o fascismo, como Humberto Delgado.

 

P.B. – Há alguma mágoa nas suas palavras…

O.S.C. – Arriscámos carreiras, famílias, as nossas vidas… O reconhecimento tem sido diminuto e extemporâneo. Não queríamos honrarias, apenas justiça. No dia 25 de Abril de 1974, quando chegou à Pontinha, Spínola abraçou-me e disse: “A Pátria está-vos agradecida”. Depois, muito ao seu estilo, virou-se para o Almeida Bruno dizendo-lhe que tomasse nota do nome de todos os oficiais para que fôssemos promovidos. Recusámos liminarmente, acrescentando que apenas pretendíamos o reconhecimento do povo. Levámos os ideais de Abril ao ponto de recusarmos promoções.

 

P.B. – Quem é, hoje, o cidadão Otelo Saraiva de Carvalho? O que o interessa? O que o motiva?

O.S.C – Mantenho-me equidistante da vida política ativa. Mas acompanho, estou informado…faço conferências, palestras, participo em debates, leio… Entre 1992 e 2003, empenhei-me numa pequena empresa que importava e exportava produtos de e para Angola, sobretudo bens alimentares e calçado. E tenho projetos para concretizar.

 

P.B. – Não os revela?

O.S.C. – Pretendo escrever as minhas memórias do PREC. Quero publicar um livro sobre esse período.