“O que podem as Palavras”

Ana Almeida

Produtora 

In Revista TER 50

Um filme de Luísa Sequeira e Luísa Marinho
O documentário “O Que Podem As Palavras” é o fruto de mais de dez anos de trabalho e de muitos mais anos de investigação.

A Investigação

A Luísa Sequeira e a Luísa Marinho foram desafiadas a fazer um documentário sobre a publicação do livro “Novas Cartas Portuguesas” (1972). O convite tinha vindo da poeta Ana Luísa Amaral, apaixonada estudiosa da obra, que liderava um projeto de investigação na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, em parceria com o Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa, onde procurava reunir informação e demonstrar o alcance que o livro e seu respetivo estudo tiveram tanto geográfica como temporalmente. Este projeto resultou na publicação “Novas Cartas Portuguesas — Entre Portugal e o Mundo”.

Entre 2013 e 2014, as realizadoras e a equipa de investigação, organizaram e filmaram entrevistas informais com as três autoras: Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa. As autoras receberam-nas nas suas casas e tiveram maravilhosas conversas filmadas com a sua amiga Ana Luísa Amaral. O plano era que estas primeiras conversas fossem uma espécie de “pesquisa”, para que mais tarde as realizadoras, já com uma equipa de filmagem “a sério”, fizessem as entrevistas “a sério”.

Começou um processo longo de procura de financiamentos e apoios que nunca chegaram. O projeto foi colocado “na gaveta”, enquanto outros trabalhos foram mais urgentes, e assim passaram alguns anos.

As "Três Marias"

Eu fui convidada para entrar no projeto em 2018, pela mão de uma das realizadoras, a Luísa Sequeira. O meu papel seria de produtora e montadora.

 

Foi nesta altura que me envolvi no projeto e li pela primeira vez o livro “Novas Cartas Portuguesas”. A sensação que tive ao entrar no mundo das Três Marias pela primeira vez, foi de total assombro: “como é que eu nunca tinha ouvido falar deste livro?”, “como é que à distância de 40 anos, o que as mulheres sentiam em relação à sua vida em sociedade e em família, era exatamente o mesmo que eu sentia?”, “quem eram estas mulheres incríveis que escreviam coisas que pareciam arrancadas do meu peito?”

 

Para contextualizar um pouco, para quem nunca leu e não conhece o livro, “Novas Cartas Portuguesas” é uma obra epistolar, ou seja, é escrita em formato de carta. São muitas cartas. Algumas em prosa, outras em poesia, umas em resposta a outras, outras somente dedicadas a um destinatário ficcional.

 

Nestas cartas, e desempenhando diferentes personagens e papéis, as autoras traçam um retrato bastante preciso e acintoso acerca do papel da mulher em casa como esposa, como filha, como mãe; na sexualidade; na sociedade; e na política. Estes “retratos” questionam toda a organização social da época, tecendo duras críticas ao regime político e à guerra colonial.

 

A forma livre e destemida como as autoras abordam cada uma destas temáticas, coloca-as na mira da PIDE/DGS que censura e apreende a obra, dois dias depois da sua publicação, e as acusa de atentado ao pudor, por terem escrito um livro “pornográfico”.

 

Entre 1972 e 1974, as três autoras enfrentam um julgamento político, disfarçado de julgamento de defesa da moral e bons costumes. Assim, Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa resolvem pedir ajuda internacional e contactam os movimentos feministas que, na altura, começavam a surgir um pouco por todo o mundo. As Três Marias, tornam-se na primeira missão do primeiro Movimento Feminista Internacional, que congrega grupos de todo o mundo, em torno da mesma causa: libertar as autoras das “Novas Cartas Portuguesas”.

 

Esta era a história que queríamos contar.

A PRODUÇÃO DO FILME

Em 2020, em pleno confinamento do COVID-19, conseguimos um pequeno apoio para produzir o filme, e foi a partir daí que a produção efetivamente começou.

Infelizmente, Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa faleceram durante o tempo em que o projeto buscava financiamento, por isso, as conversas “informais” foram a base de todo o filme. E que conversas…

Se enquanto produtora o meu trabalho é procurar financiamentos e apoios para tornar o filme possível, enquanto montadora tenho a oportunidade de explorar todas as filmagens disponíveis e ajudar a contar a história.

No caso do “O Que Podem As Palavras” tive o enorme privilégio de poder ouvir as conversas das autoras com a Ana Luísa Amaral. São horas e horas com três mulheres magníficas, onde elas falam sobre tudo. Desde história, o seu processo criativo, antropologia, filosofia. Para mim, foi como se eu fosse convidada a fazer parte daquela partilha e me tivesse tornado amiga delas também.

A seleção de entrevistas para montar o “esqueleto” da história, foi complicada, porque tivemos que abdicar de alguns momentos maravilhosos, mas que não contribuíam para o “todo” que é o filme. Durante a montagem, resumir e concretizar a história, são as principais preocupações. É aqui que o filme ganha forma.

Fizemos mais algumas entrevistas, para complementar a história e ter diferentes perspetivas. Convidámos a atriz Mia Tomé para dar voz às cartas e assim trazer-lhes mais calor. E finalmente rematámos todo o trabalho visual com o extraordinário artista Sama, que com as suas ilustrações, colagens e animações, deu vida aos relatos e peripécias revelados nas entrevistas.

Seguiu-se o trabalho de criar ambientes sonoros e misturar todo o áudio, o que foi um trabalho incrível do designer de som Maurício D’Orey, que conseguiu que disfarçar o facto de que cada entrevista tinha sido gravada com um microfone diferente e em circunstâncias muito distintas.

O filme ganhou o Prémio do Público para Melhor Filme Português no DocLisboa 2022 e foi o documentário português mais visto nos cinemas em 2023.

 

“O Que Podem As Palavras” é um dos filmes em que mais gostei de trabalhar. Desde o início assumimos, e creio que concretizámos, a enorme responsabilidade que tínhamos em mãos: trazer para os dias de hoje a história destas mulheres notáveis e passar a palavra sobre as “Novas Cartas Portuguesas” para as novas gerações: a minha e as que vierem a seguir.