“O sindicalismo é um ancoradouro da democracia”

Manuel Carvalho da Silva

Antigo secretário-geral da CGTP

In Revista TER 50

É uma figura histórica do sindicalismo português. Foi operário eletricista, planificador de trabalho, coordenador e secretário-geral da CGTP-Intersindical Nacional entre 1986 e 2012. Licenciado e doutorado em Sociologia pelo ISCTE-IUL, é coordenador do Laboratório Colaborativo para o Trabalho, Emprego e Proteção Social (CoLABOR) e do polo de Lisboa do CES da Universidade de Coimbra. Foi, designadamente, Professor Catedrático convidado da Universidade Lusófona, Vice-Presidente do Conselho Geral da Universidade do Minho e coordenador do Observatório Sobre Crises e Alternativas e é autor de vários livros e capítulos de livros e de centenas de artigos sobre trabalho, emprego, sindicalismo, Estado Social, Europa e globalização.

A TER entrevistou-o sobre o contributo do movimento sindical para o derrube do Estado Novo e sobre as grandes questões que a contemporaneidade coloca ao mundo do trabalho.

TER – Quando se dá a sua aproximação ao movimento sindical?

Manuel Carvalho da Silva – A minha inscrição no sindicato – Sindicato dos Eletricistas do Norte – ocorreu no início de 1966.   Depois de concluir o Curso de Formação Montador Eletricista na Escola Carlos Amarante, em Braga, quando comecei a trabalhar como operário eletricista no Porto.   No regresso da guerra colonial, em abril de 1972, fui trabalhar (e fazer formação em organização de trabalho) para a Chromolit Portugal, próximo das Caldas das Taipas. Em agosto de 1973 fui despedido (era considerado Bom trabalhador) por não aceitar algumas imposições patronais. Aí surgiu o meu primeiro contacto com o Sindicato, na pessoa do dirigente do Sindicato dos Metalúrgicos de Braga, Manuel Silva, ativo militante católico, extraordinário ser humano e grande sindicalista nos planos regional e nacional. Como já tinha a perceção de poder ser despedido, havia concorrido para outras empresas e rapidamente entrei nos quadros da Eletromecânica Portuguesa Preh, na Trofa. Fui dirigente sindical muitos anos, mas mantive sempre alguma ligação à empresa, a cuja Comissão de Trabalhadores pertenci desde 1974 até 2011. Até comecei por pertencer ao que, no contrato de trabalho negociado no final de 1973, se designava por Comissão Mista – uma parte trabalhadores eleitos, outra parte quadros indicados pela Administração. Fui delegado sindical na empresa; em junho de 1975 fui eleito membro do Secretariado da União de Sindicatos do Porto; no início de 1976, dirigente do Sindicato dos Eletricistas do Norte, em representação do qual fiz parte da Comissão Organizadora do “Congresso de Todos os Sindicatos”. Nele (o 2º da Intersindical em jan. de 1977) fui eleito para o Secretariado Nacional da Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses-Intersindical Nacional (designação adotada pela 1ª vez) e passei a integrar a sua Comissão Executiva com a responsabilidade da área de organização. O meu percurso a partir daí é mais conhecido.

 

TER – De que forma o sindicalismo foi uma forma de resistência ao Estado Novo? De que forma contribuiu para a queda do regime?

MCS – O sindicalismo começou por resistir à criação dos “Sindicatos Nacionais” corporativos, impostos pelo Estatuto do Trabalho Nacional (1933), modelo inspirado na “Carta del Laboro” do fascismo italiano. A greve geral de 18 de janeiro de 1934 e muitas outras duras lutas desse período integraram-se nessa resistência. Contudo, o corporativismo sindical foi sendo imposto pelo regime e tornou-se relevante instrumento da ação política do fascismo português, do Estado Novo.

A ação dos Sindicatos Nacionais não impediu o desenvolvimento de importantes lutas operárias e sindicais, por exemplo nos anos quarenta, aproveitando o contexto da saída da II guerra Mundial e a ação do Partido Comunista Português, partido que defendia que os trabalhadores deviam tentar conquistar os “Sindicatos Nacionais” por dentro, formando listas para ganhar as suas direções (esta orientação foi adotada também pelos movimentos operários católicos progressistas). Entretanto, Portugal começou a registar pequenos passos de mudança na década de 60: alguma industrialização, embora tardia; entrada de multinacionais a aproveitarem os nossos baixos salários; os primeiros sinais da terciarização da economia; o processo migratório interno e o impacto social e político forte, vindo da emigração e da guerra colonial. Neste quadro, intensificou-se a luta operária e sindical.

Na segunda metade da década de 60, aquelas listas começaram a somar vitórias criando uma dinâmica laboral e social nova, transformadora, muito participada e disseminada por praticamente todo o país, apesar da repressão e da prisão de sindicalistas. É nesse contexto que surgem as Reuniões Intersindicais – a 1ª convocada a 01 de outubro de 1970 e realizada no dia 11 – que rapidamente se consubstanciaram, na prática, em Central Sindical, a Intersindical

Com esse avanço organizacional veio uma forte agenda que incluía: i) a contratação coletiva com conteúdos inovadores; ii) a redução do horário de trabalho, desde logo, a exigência da “semana inglesa”; iii) propostas para a segurança social com excelentes teses; iv) reclamação das liberdades em geral, e a de reunião em particular; v) propostas para o Salário Mínimo Nacional (SMN); vi) a reclamação do dia 1º de Maio como feriado. Em 73/74, centenas de milhares de trabalhadores participaram em lutas laborais. Este sindicalismo foi importantíssimo na luta contra o fascismo e veio a ser relevante contributo no desenvolvimento da nossa Democracia.

TER – Aquando do 25 de Abril, houve articulação entre os sindicatos e o Movimento dos Capitães?

MCS – Não faltavam vasos comunicantes. Deve ter-se presente que o Movimento dos Capitães se organizou com um programa consistente e atual. Os seus autores conheciam bem os anseios do povo, os objetivos e respostas prioritárias, logo, também, as dinâmicas políticas e sociais. E a dimensão da luta já tinha expressão nacional. Greves como a da Grundig, em Braga em 1972, chamavam a atenção. A Agenda das reuniões intersindicais era conhecida de toda a oposição – até Francisco Sá Carneiro e Miller Guerra (Ala Liberal da ANP) visitaram sindicalistas presos. No Congresso Democrático em Aveiro, em 1973, estiveram sindicalistas com intervenções e propostas e teses bem trabalhadas como a da Segurança Social. Havia sindicalistas influentes com ligações a Capitães que conspiravam. E até relações familiares como, por exemplo: o José Luís Judas, destacado sindicalista, é irmão do José Miguel Judas que foi membro do Conselho da Revolução.

Este sindicalismo presente nas reuniões intersindicais (a PIDE/DGS chamou-lhe, “embrião de uma Central Sindical” em fevereiro de 1971) contribuiu para que o Golpe Militar dos Capitães – com um programa político progressista – se transformasse em Revolução. Foi bem aproveitado o espaço temporal entre o 25 de Abril e o 1º de Maio, Dia do Trabalhador, assinalado em liberdade (Dec.-Lei 175/74, de 27 de Abril) por todo o povo. Mais de 50 sindicatos estiveram envolvidos na sua realização um pouco por todo o país.

Além disso aquela agenda sindical municiou decisões dos governos provisórios para resposta à explosão de direitos de que os trabalhadores se sentiam credores – é enorme o conjunto de legislação progressista e transformadora produzida entre o 25 de Abril e o dia da entrada em vigor da Constituição da República – 02 de Abril de 1976.

TER – Como soube do 25 de Abril? Como viveu esse dia?

MCS – Por um contacto que tinha no trabalho e conversas em casa de um conterrâneo (freguesia de Viatodos) eu sabia que havia o Movimento dos Capitães, que o 16 de Março não o tinha anulado e que estava para acontecer “alguma coisa forte”. Quando na manhã de 25 de Abril ia para o trabalho (por volta das 7 horas) vi uma coluna militar na Via Norte, e pensei, de imediato, é hoje. Logo que uma loja que vendia rádios abriu, fomos comprar um e passamos o dia quase todo – alguns colegas de trabalho incluindo dois chefes alemães – a ouvir notícias e a identificarmos os nomes mais relevantes que iam surgindo nelas. A alegria foi crescendo ao longo do dia. Porque a caminhada da democracia, apesar de todos os revezes, foi altamente positiva, ainda hoje sinto dimensões dessa alegria.

 

TER – 50 anos depois do 25 de Abril quais considera serem os grandes desafios para o movimento sindical?

MCS – Venho dizendo e escrevendo que, na sociedade atual, podemos arrumar os imensos impactos e desafios com que deparamos em oito grandes conjuntos,: i) as questões relativas ao avanço do conhecimento científico e tecnológico, com incidência presente no digital, na robotização e na inteligência artificial; ii) o sistema económico financeirizado, os seus falsos determinismos, e as reformulações das cadeias de produção e de distribuição; iii) as (des)igualdades e a distribuição da riqueza; iv) os problemas climáticos e ambientais; v) o aumento da esperança de vida e a necessidade de o dignificar; vi) o problema demográfico – influencia o trabalho e o emprego e afeta estruturalmente as condições de prestação dos direitos sociais e laborais fundamentais; vii) o papel da Escola, da sua relação com o saber fazer e dos instrumentos que poderá propiciar aos jovens para serem cidadãos plenos; viii) as políticas públicas necessárias num Estado Social de Direito Democrático.                                    Quando discutimos aqueles conjuntos de questões, o trabalho e o emprego surgem sempre no centro. Entretanto, a sociedade, cada vez mais multicultural e multiétnica, está tomada por fragmentações e atomizações, mas o trabalho continuará a ser um dos elementos mais transversais (criador de identidades coletivas) ao conjunto dos seres humanos. Além disso, as mudanças geopolíticas e geoestratégicas estão a ser profundas e influenciam quase tudo, desde logo, a divisão social e internacional do trabalho.

As soluções a encontrar para a Segurança Social, o SNS, a Escola, a habitação, a Justiça, têm de ser feitas considerando que a questão social surge de novo no centro dos grandes problemas da Humanidade. Como no passado, o capitalismo (na sua génese de sistema económico, social e político) não respeita, a não ser forçado, os direitos do trabalho, nem a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que até fez de conta ser uma Carta com que se identificava. Todavia, dispensa facilmente a Democracia.

Ora, o sindicalismo é um dos ancoradouros da Democracia, um dos opositores mais eficazes ao belicismo e à exploração que o fascismo faz do descontentamento, do ressentimento, do egoísmo, do ódio, da contínua divisão entre “pessoas de bem”, “malandros” e “fracassados”, da negação das liberdades e de direitos sociais e laborais.

O lugar e o valor do trabalho na sociedade não dispensam a existência de sindicatos: eles não vão desaparecer. Mas correm o risco, como noutros períodos, de não serem muito relevantes. Impõem-se-lhes, assim, leituras rigorosas sobre a construção de agendas próprias que sejam ofensivas. No difícil tempo que vamos viver, o sindicalismo será indispensável. Todas as forças da Esquerda e progressistas lhe devem dar boa atenção.