Antes e Depois

António Barreto

Cientista social e cronista

In Revista TER 50

“Antes”, Portugal era um país pequeno, pobre e analfabeto. E sem liberdade. “Hoje”, é tão pequeno como era, embora a dimensão seja menos importante. É muito menos pobre, mas ainda é atrasado relativamente aos nossos vizinhos. Já não é analfabeto, apesar de os seus habitantes terem qualificações técnicas e formação cultural muito deficientes. Numa lista mundial de países, apesar de grandes progressos, Portugal era e é um dos mais ricos entre os pobres ou um dos mais pobres entre os ricos.

Portugal era conservador e obediente. Inculto e atrasado. Tinha a população mais jovem da Europa, com elevadas taxas de natalidade. Também tinha as piores taxas de mortalidade infantil. Assim como tinha uma baixa esperança de vida à nascença (era de 60 anos em 1960). Para os padrões actuais, as famílias eram grandes, tinham em média quatro ou mais pessoas. Era frequente viverem, sob o mesmo tecto, três gerações (avós, filhos e netos). A maioria dos portugueses era rural, vivia em aldeias ou pequenas vilas em regiões ditas do “interior”, mas que, na verdade, constituíam quase o país inteiro. Grande parte da população vivia da agricultura e de tarefas comerciais e de serviços que lhe estavam ligadas. Quase 40% dos habitantes eram analfabetos, nunca tinham frequentado a escola. Muito poucos terminavam o ensino secundário e apenas uma pequena minoria tinha acesso ao ensino superior. A saúde era muito deficiente, não havia um serviço de saúde para todos. A segurança social era muito reduzida: contavam-se um pouco mais de cem mil os pensionistas e reformados.

A indústria era incipiente. Portugal era um país muito antigo, com as mesmas fronteiras há mais de oito séculos. Apesar de origens diversas, a população portuguesa, ao longo dos séculos, foi-se tornando homogénea como poucas na Europa. Falava-se uma só língua, a quase totalidade pertencia a uma etnia, praticava-se uma só religião. O país tinha uma história mais longa, rica e complexa do que a sua dimensão sugeria. Em resultado dos “Descobrimentos” e da colonização, era cabeça de um grande império, o último da Europa. O governo do país era, entre os anos vinte e os setenta, uma ditadura de partido único. Os portugueses não conheciam as liberdades habituais dos países democráticos: liberdade de associação e de expressão, imprensa livre, voto universal e eleições livres e regulares. Além da falta de liberdade, os Portugueses viviam o drama da guerra do Ultramar, conduzida em três colónias africanas.

Os últimos anos do “antes” foram já de mudança. Com a emigração para o estrangeiro, cerca de um milhão de portugueses foi viver e trabalhar para os países europeus e americanos. A pertença de Portugal à EFTA (Associação Europeia de Livre Comércio) contribuiu para abrir as fronteiras e a economia: criaram-se indústrias e desenvolveu-se a exportação. Em 1974, havia praticamente o pleno emprego e faltava mão-de-obra. Muito gradualmente, mas já com algum significado, a educação, a saúde e a segurança social desenvolveram-se. Sobretudo por causa da guerra em África, as pressões liberais e democráticas tiveram poucos resultados.

A passagem do “Antes” para o “Depois” foi rica, complexa e, por vezes, dramática. Abriram-se as portas para a liberdade. Não foi criado um novo modelo de sociedade, muito menos imposta uma forma de governo: foi deixada essa escolha às gerações seguintes. Fundou-se um Estado democrático: em poucos anos, foram criadas e eleitas as principais instituições, Presidente, Parlamento, Governo e Autarquias. Portugal aderiu à Comunidade Europeia.

Logo após o 25 de Abril de 1974, tinha cessado a guerra em África. A chamada descolonização teve duas realidades contraditórias. Por um lado, pôs-se termo à guerra, dela libertando os portugueses e os africanos, permitindo assim que estes últimos tornassem real a sua independência. Mas a descolonização, tal como decorreu, foi desastrosa. Nos três principais países (Angola, Guiné e Moçambique), depois de proclamadas as independências, desenrolaram-se guerras civis que duraram décadas e em que morreram centenas de milhares de pessoas. Antes disso, cerca de 700 000 portugueses e africanos foram obrigados a deixar tudo e a instalar-se em Portugal, em processo de enorme dificuldade, muitas vezes em condições dramáticas.

Com o “Depois”, abriu-se uma nova era. É um tempo em que a vida depende das escolhas dos cidadãos e em que estas variam com os momentos, as idades, as regiões e as vontades. O “Depois” não é uma nova ordem, não é um novo pensamento, um novo credo, uma nova autoridade e uma nova identidade. O “Depois” é tudo isso no plural. É a escolha dos portugueses, ano após ano, obra após obra e eleição após eleição. As escolhas dos cidadãos são diferentes e dependem deles próprios, não de uma autoridade que comanda. Muitas vezes, as escolhas estão certas e correm bem. Outras, estão erradas e correm mal. Mas são escolhas livres e os cidadãos sãos os responsáveis.

Portugal continua a ser um país pequeno, mas aberto à Europa e ao mundo. Talvez um milhão de estrangeiros vieram viver para Portugal nestes quase 50 anos e assim se criou uma nova população. Mas mais de um milhão de Portugueses voltou a emigrar, o que revela uma profunda mudança de padrão, dado que agora é um país ao mesmo tempo de imigração e de emigração. Recebe imigrantes, porque necessita de trabalhadores que não existem cá, mas também exibe as carências de uma sociedade e de uma economia que não satisfazem todos, que não criam suficientes empregos e sobretudo não exigem mais qualificações. Alguns milhões de cidadãos aprenderam a ler e escrever; centenas de milhares chegaram ao ensino secundário muitos foram até à universidade. Portugal desenvolveu-se e conheceu novas formas de progresso. A situação social melhorou, assim como o bem-estar dos portugueses. Portugal mudou muito. Mas os outros países também. E por vezes mudaram mais e melhor do que nós.

É verdade que o “Depois” exibe muitas situações diferentes do “Antes”. A população estagnou e envelheceu muito. Hoje é uma das populações na Europa (e no mundo) que envelhece mais rapidamente. As taxas de mortalidade infantil deixaram de ser as maiores da Europa, são hoje das menores. As famílias diminuíram de dimensão, não chegam a três pessoas em média. Os divórcios e as uniões de facto criaram famílias diferentes e estão na origem de novos costumes e novos modos de vida. Situação única na história de Portugal, é muito elevada, de novo, a emigração para o estrangeiro, o que denota as nossas insuficiências, mas também e pela primeira vez na história é muito elevada a imigração de estrangeiros para Portugal. Portugal perde todos os anos muita população qualificada, que vai trabalhar para a Europa, e recebe todos os anos muita população desqualificada que vem ocupar-se dos trabalhos para os quais já não há nacionais. A maior parte da população vive hoje nas áreas metropolitanas e em cidades de alguma dimensão, o mundo rural está em nítido despovoamento, o que pode criar problemas de ecologia e de aproveitamento dos recursos.

Muitas destas novas realidades são, “Hoje”, melhores do que “Antes”. Na cultura, na Educação, na Saúde, nos rendimentos e nos serviços às famílias (água, gás, electricidade, esgoto, telefone, televisão, aquecimento) há indiscutíveis progressos. Por exemplo, aos 120.000 pensionistas e reformados de 1960, correspondem, hoje, mais de três milhões de pessoas. Mas também há muitos erros e muitas insuficiências. A sociedade portuguesa é muito desigual. Não se desenvolveu mais do que as outras europeias, talvez até menos em muitos aspectos. Os responsáveis, hoje, são os portugueses que não podem queixar-se dos “outros”, dos que “mandam”, “deles” e dos que nos governam. A grande diferença entre ditadura e democracia reside na liberdade que, para o melhor e o pior, permite aos cidadãos escolherem, todos os dias, todos os anos, o modo como querem viver. Só isso é um progresso maior e indiscutível.