Da Escuridão à Luz: uma história de sobrevivência e superação

Maria João Dias

Docente

In Revista TER 49

A casa está silenciosa, os miúdos estão a dormir, está tudo arrumado e o meu corpo pede (ainda muito) descanso. Em breve, tenho de ir dormir e tomar a medicação que me ajuda a descansar (melhor) desde que vivi aquele que foi o momento mais difícil da minha vida. Ainda tenho medo de fechar os olhos e não conseguir acordar, ou de estar presa no meu próprio corpo e ninguém vir em meu auxílio… Existem (ainda, acho eu!!) dezenas de imagens de que não consigo livrar-me e que voltam ao meu pensamento, sobretudo quando estou no escuro, mesmo que esteja sentada ao lado da minha filha, a dar-lhe a mão, à espera que ela adormeça.

Assim, e porque hoje passaram, precisamente, seis meses desde que me vi na sala de emergência do Hospital de Braga, refleti se deveria responder ao desafio da Ana e partilhar a minha história. Ponderei bastante, afinal estou a expor uma faceta bastante frágil da minha vida, mas, se a minha história, mesmo que ainda não seja de (total) superação, puder ajudar alguém que enfrente um desafio difícil pela frente, penso que esta partilha cumprirá o seu propósito.

Tenho, então, uma história bonita para vos contar…

Há 6 meses fiquei muito doente, tão doente que, depois de ter sido encaminhada pelo INEM para o Hospital de Braga, dei entrada na sala de emergência, iniciaram as intervenções que me preparam para seguir para um internamento na Unidade de Cuidados Intensivos. Estava com uma pneumonia grave, já tinha entrado em choque séptico e em múltipla disfunção de órgãos. O Dr. Bernardo explicou-me tudo, mas eu achava que, mesmo depois de todas aquelas intervenções, ia para casa porque tinha dois filhos que não poderiam ficar sem mim. O Vasco era um bebé de 17 meses e a Benedita tinha 3 anos, como é que eu poderia ficar ali?!!! Mas fiquei.

Não me lembro de chegar ao meu quarto na UCI, mas sei que ainda tentaram de tudo para evitar a indução do coma. Não era possível! Já mais calma, aceitei todas as orientações e apenas pedi que ligassem ao meu marido porque eu tinha três recados para lhe dar. Recordo de os repetir na minha mente de forma contínua até ele me dar a mão e perceber que eu iria estar ausente por tempo indeterminado.

E pronto, foi a escuridão total.

Os dias passaram, a minha situação agravou-se ainda mais e, num dia, depois de terem deixado os meus pais (os dois em simultâneo, o que não é permitido na UCI) visitar-me e saírem com a convicção de que estariam a despedir-se de mim, eu “cheguei ao limite”, “à linha que separa dois mundos”, “estive na corda bamba”. Não sei ainda que expressão utilizar. Aliás, só há pouco tempo consegui aceitar que poderia ser alguma delas!! Mas sei que o meu marido já não pode entrar porque “estavam a ver-se à rasca para me ventilar”.

Mas, como prometi que isto seria uma história bonita, mesmo naquele limite, momento de decisão, eu descobri que tenho uma vontade enorme de viver, que a ciência se aliou às orações de dezenas de pessoas que se uniram à minha volta a exigir aos céus a minha recuperação. Sou uma privilegiada!!

Passaram outros tantos dias e acordei. Foram dias seguidos de delírios. Tal tinha sido a medicação que tomei, que também a minha mente ficou doente e eu criei e vivi histórias que (não) aconteceram, vi e ouvi episódios que, simplesmente, não eram reais. A minha mente “viu” festas na UCI, houve um dia em que perguntei ao meu marido quem tinha ganho as eleições (será que na altura eu tinha poder de adivinhação?!!!), houve episódios do CSI que eu consegui controlar (posso tentar explorar e perceber se tenho sucesso na área da realização), mas houve muitos (mais) episódios angustiantes, que ainda hoje me perturbam se me vierem à memória, mesmo com a consciência (ainda no hospital) de que nada foi real.

Chegou o dia da minha alta e poderia voltar a ver os meus filhos, mesmo sabendo que ainda teria um grande período de recuperação pela frente, poderia estar com eles!

Trouxe no coração todas aquelas pessoas que cuidaram de mim, nunca conseguirei agradecer tudo o que fizeram, além do seu trabalho, para que eu conseguisse ultrapassar aquele obstáculo.

Mas tinha outro(s) obstáculo(s) à minha frente. Saí do hospital sem força muscular, nem sequer conseguia alimentar-me. Foi duro interiorizar que, além de não conseguir cuidar dos meninos, também eu precisava de ajuda! Na alimentação, na higiene, na locomoção. Houve uma altura em que o Vasco andava melhor do que eu, ou melhor, ele já andava e eu não!!

Foi um choque, além de todas estas limitações físicas também precisava de ajuda a gerir o que estava a sentir. Estava focada na minha recuperação física, mas invadiam-me pensamentos catastróficos como, por exemplo, nunca mais voltar a conseguir fechar os olhos, o ranho no nariz dos miúdos que poderia deixar-me novamente doente, o medo de morrer.

Mas já vos falei que sou, de facto, uma pessoa privilegiada. Foram tantas, mas tantas, as pessoas que se voluntariaram para me ajudar nesta minha recuperação que, mesmo através de uma mensagem, eu consegui juntar todas as minhas (nossas) forças e dar início a esta recuperação física e psicológica.

Foram meses de fisioterapia diária, até que, finalmente, consegui pegar os meus filhos ao colo, os dois, e em simultâneo! Mas também dei prioridade ao cuidado da minha mente e passei a ser acompanhada logo após a minha alta. Além de passar a tomar medicação também complemento com psicoterapia, por sugestão da minha médica. Tentei encontrar explicações para as histórias que criei, pois não conseguia aceitar a possibilidade de ter sido a minha mente a criar aqueles episódios. Demorei tempo a verbalizar que estive mesmo naquela situação de “entre vida e morte”, a aceitar que nos 12 dias em que estive em coma, todas as pessoas que me querem bem viveram um dias de angústia e sofrimento, sem a certeza de que eu voltaria a acordar. Ainda hoje tenho dificuldade em olhar para algum teto que eu desconheça, com receio de rever aqueles quadrados da ventilação do teto do meu quarto na UCI. A sirene de uma “ambulância amarela” é angustiante. Ainda há dias em que tenho medo de fechar os olhos. Ainda tenho medo de ficar doente!

Ainda é difícil acreditar que houve um raio que caiu em cima de mim, mas também se costuma dizer que “um raio não cai duas vezes no mesmo local”…

Há um mês, já bastante recuperada fisicamente, decidi que era tempo de voltar ao trabalho. Foi uma decisão muito ponderada porque foram meses em que estive bastante resguardada, mas só a exposição me iria ajudar a perceber como iria reagir, a encontrar estratégias para lidar com as situações. Senti que era tempo de retomar a minha vida!

O dia de regresso foi difícil, a primeira semana foi difícil, um mês depois ainda é difícil. Mas faço parte de uma equipa que me acolhe, que está atenta, que respeita as minhas pausas. A única pressão que sinto é aquela que coloco em mim própria, mas isso já é algo que me caracteriza. 

Faço parte de uma instituição em que as pessoas que se cruzam comigo ainda perguntam se me sinto bem, se me estou a adaptar bem. Houve até quem já se tivesse sentado ao meu lado nos sofás do segundo piso e partilhasse comigo um momento de introspeção. Assim, não será sempre difícil! Mas já tinha referido que sou uma privilegiada…

Apesar de já me tentarem feito crer que um dia voltarei a ser a mesma, eu tenho a certeza de que isso não será possível. Nunca poderei ser a mesma, e está tudo bem! Continuarei a ter ajuda para superar a marca que o trauma deixou em mim, mas agarro-me ao facto de eu ser uma sobrevivente, que teve a sorte de se tornar uma pessoa mais forte e ter o privilégio de poder escrever este texto, na tentativa de que ele possa ajudar alguém que tenha de ultrapassar um obstáculo.

Maria João Dias (ao centro) com as enfermeiras Céu Pereira (à esquerda) e Marta Gomes (à direita)

Na Comemoração do Dia da Unidade da UCI, não podia deixar de registar o momento em que abracei duas Enfermeiras que ficarão para sempre no meu coração. Obrigada, Enf Céu, por me ter dado a mão no momento em que acordei do coma! Obrigada, Enf Marta, porque me ter penteado o cabelo, por me ceder o seu telefone para falar com o meu marido e usar a sua conta da Netflix para que eu pudesse ver 4 episódios de “Rabo de Peixe”. Um grande OBRIGADA a todos os outros profissionais de saúde e auxiliares da UCI do Hospital de Braga que me ajudaram a debelar a doença e a minimizar o trauma.