Ter Casa

José Carlos Ramalho

Repórter RTP

In Revista TER 28

Foi há pouco mais de onze anos que decidi pôr um ponto final. Um tempo antes, pensava que iria ser difícil… mas não foi! De carreira começada há dezanove anos, nos últimos dez tinha conhecido quase um terço do mundo. Continentes, povos, culturas, uma mole de saberes, cheiros e sabores enchiam o coração e alma. Cada reportagem era uma missão. Não importava onde. Se ao cruzar da esquina, se do outro lado do mundo. Era, sou, um homem de sorte! Uma profissão sem rotinas, transversal à sociedade. De manhã com o Presidente da Republica, à tarde com um sem-abrigo. O maior desafio era estar “à altura” dos dois…estar “à altura” de todas as situações. Pouco importavam as minhas crenças e convicções. Viria a descobrir que a equidistância seria a chave para o equilíbrio profissional. Viria a descobrir também, que não consigo despir a pele de Jornalista…ainda é assim, 24 horas por dia, todos os dias, há quase trinta anos.

Por isso, quando surgiu uma criança, foi fácil dizer: “NÃO! Desculpem, mas não vou. “
Sem dificuldade (mas às vezes com saudade) abdiquei de uma fama que não era minha. Afinal, tinha estado em tanto lado e ninguém sabia. A figura do “Jornalista-Invisível” de televisão, agradava-me. Sem fotografias, sem provas da minha passagem por tantos lugares, fui guardando tudo naquele disco rígido a que chamamos memória.
Quando há pouco tempo, a minha doce Mariana, agora, com quase onze anos, me pediu para contar um episódio do meu trabalho, perdi alguns minutos em busca da história certa.

Podia ter falado das inúmeras guerras por onde passei. Dos tiros que passaram perto, da amiga que morreu no Afeganistão, do colega que se atrasou na chegada e com isso salvou a minha vida, da primeira vez que me apontaram uma arma (porque da segunda nem liguei), da forma inconsciente em que (para ter o melhor plano) me sentei em cima dum míssil, dos olhos daquele tubarão branco a 10 centímetros do meus, daquele atentado em que escapei por minutos, daquela vez que caí numa armadilha e me levaram para o quartel do inimigo, de como escapei ileso de uma madrassa, de como fui entrando naquela mesquita, de como quase vi o Adamastor ao dobrar o Cabo da Boa Esperança ou de me sentir pequeno perante a força de um tsunami…
As sinapses eram tamanhas, e ela tinha pedido apenas uma história, e sendo criança, merecia uma de final feliz.

Como sei que há em todas as narrativas há pelo menos duas versões, esta é apenas a minha:

Estávamos em Março de 1998, fiz parte da equipa de reportagem da RTP, que acompanhou a visita presidencial de Jorge Sampaio à Região Autónoma da Madeira. O dia-a-dia era dividido por duas equipas de reportagem. Uma acompanhava o Presidente e a comitiva, a outra fazia reportagens de enquadramento social.

Na antevéspera da deslocação ao município de Câmara de Lobos, na altura uma das zonas mais pobres da Europa, a minha colega Margarida, tinha marcado um encontro com um dos “padres vermelhos” da ilha da Madeira.

Lá estava ele, sentado, numa “quase taberna”, sem sotaina ou colarinho branco. Era mais um entre tantos. Não fosse a forma carinhosa como era tratado por quem entrava, nenhum de nós calcularia que aquele era o Padre.

Dissemos ao que vínhamos. Queríamos fugir do institucional, mostrar não apenas o bonito, o retrato turístico, mas as outras construções de realidade social que, muitas vezes, ficam do lado de fora do ecrã.

O Padre ouvia-nos em silêncio. Queríamos entrar nas ruas esconsas e estreitas da cidade, conhecer os pescadores e o que faziam para dar algum conforto aos seus. Queríamos entender porque é que as crianças perdiam a inocência cedo demais. Porquê tanta pobreza ali concentrada. Ansiávamos transformar em imagem, aquilo que sabíamos real. E o padre continuava em silêncio… Estudava-nos. Tentava perceber se podia confiar em nós. Na realidade, ele não nos conhecia e iria abrir as portas de quem confiava nele. Não queria a sua gente usada para ganhar audiências. A noite e a longa. Os silêncios iam ficando menores e pouco antes de nos despedirmos disse:

“Encontramo-nos amanhã de manhã. Já sei onde os vou levar!”

“Sempre soube, Padre Edgar…” – disseram os meus pensamentos.

Já de manhã, quando nos preparávamos para invadir cidade e privacidade, o padre informa-nos que o nosso caminho é o oposto. Desconfiados, fomos deixando aquele ninho de pobreza atrás de nós, enquanto o carro subia um morro inclinado.
“Vamos à Casa do Porrão”

Só o nome assustava, mas infelizmente, já tinha visto de tudo um pouco. Conhecia a selva e a selva urbana, tinha palmilhado desertos, atravessado campos de refugiados, bairros de lata no Brasil, Venezuela, Angola e África do Sul… pouco me poderia impressionar.

O carro parou. À nossa frente estava uma edificação de piso térreo. As portas eram grandes e velhas. E quando se abriram, o meu mundo tombou.

A Casa do Porrão era um pátio. Lá dentro viviam centena e meia de pessoas em menos de duas centenas de metros quadrados. A zona telhada era tão pequena, que nenhuma casa tinha mais de dois metros da porta até ao fundo. E o cheiro que a câmara não conseguiu captar ainda hoje vem à memória.

Sem água, sem luz, famílias inteiras na mesma casa, que se reduzia a uma sala e uma cama. O candeeiro a petróleo, contrastava com o luxo do hotel onde estava hospedado.
A criança de seis anos, que parecia ter dois, o neto toxicodependente com menos dentes que a avó com quem tinha de partilhar a cama, a menina de dezoito anos carregada de filhos, o pai que tinha de trazer comida à noite a qualquer custo…

“Bolas Edgar! Não estava preparado para isto! Onde está o teu, meu, nosso Deus! Não quero esta dura realidade do meu quintal! Não quero isto no meu país!”- Era o que me ocorria no pensamento enquanto registava cada momento. O que eu chorei para dentro! Por certo que a Margarida chorou também. Foram horas de conversa, de momentos vazios de esperança que ficaram registados naquelas cassetes.

Ao fim da tarde, ao deixarmos a Casa, éramos nós que estávamos num incómodo silêncio. O padre, agora sorria.

À noite a reportagem entrou no Telejornal e apesar dos parabéns recebidos, nem eu, nem a Margarida estávamos felizes e vaidosos.

No dia seguinte, manhã cedo, iniciou-se a visita ao concelho de Câmara de Lobos. Roteiro presidencial traçado de forma milimétrica, afastava Jorge Sampaio de sítios “menos bons”.

Mas, ao chegar à cidade, o Presidente exclamou:

“Eu quero ir a Casa do Porrão!”

Não havia segurança, protocolo, programa o que quer que fosse, que o arredasse desse intento.

E lá fomos. Comitiva em peso, ladeira acima, até à dita Casa.

Não sei o que sentiu o Presidente… talvez o mesmo que eu, mas com um peso e responsabilidade diferentes. As palavras eram poucas. Ouvia e chorava.

Um Presidente também chora! Porque não chorei eu também?

Foram algumas horas de verdadeira comoção. Desta vez não era um exclusivo. A notícia estava em todo o lado e finalmente, a Casa era conhecida.

Penso que só o Padre estava feliz.

Alberto João Jardim, num discurso inflamado, prometeu que daí a um ano, toda aquela gente teria uma casa…

Cansado de ouvir promessas, a minha e a vida de todos os presentes continuou noutros lugares.

Num dia de Fevereiro em 1999, a Margarida ligou-me:

“Zé, já podemos morrer em paz. Inauguraram um bairro e a Casa do Porrão foi fechada.”

Não foi promessa em vão! Agora sim. Chorei no meio da redacção, sem vergonha, perdido em tanta alegria.

Esta foi sem dúvida, a reportagem da minha vida, mais importante que qualquer aventura.

Com este trabalho, tomei consciência que as minhas acções têm consequências…e nem todas são obrigatoriamente más.

Seja qual for a vossa profissão, pensem que mesmo nunca venham a saber, o mundo pode estar um pouco melhor graças a cada um de nós.