“Santo António de Mixões da Serra é um retrato de Portugal com todos os seus defeitos e virtudes”, Alfredo Cunha

Alfredo Cunha

Fotógrafo

In Revista TER 44

É, consensualmente, um dos mais importantes fotógrafos portugueses. Fotografou o 25 de Abril – de que se tornou o mais emblemático fotógrafo – a descolonização, Fátima, o PREC, a queda de Ceausescu, a Índia, a guerra do Iraque, presidentes da República (foi o fotógrafo oficial de Ramalho Eanes e Mário Soares), o país e o mundo nos passos de uma obra incontornável e de uma sensibilidade única de que vários livros publicados dão testemunho. Vila Verde, a terra que escolheu para viver, fica a dever-lhe um comovedor registo da romaria de Santo António de Mixões da Serra que fotografou ao longo de 20 anos e deu, em 2021, origem ao belíssimo livro “A bênção dos animais”. São fotografias que nos contam histórias, rostos que nos interpelam, figuras com as quais, apetece asseverar, já nos cruzámos. Entrevistar Alfredo Cunha, não se consegue dizê-lo de outra forma, foi um enorme privilégio.

 

Em criança, o Alfredo Cunha não queria ser fotógrafo. Sê-lo foi quase uma imposição…

Não foi quase. Foi mesmo uma imposição (risos). O meu pai e o meu avô eram fotógrafos e, portanto, para mim fotografar significava trabalhar durante as férias, nos domingos, feriados, fins de semana… Era por este motivo que não queria ser fotógrafo. Embora, nessa altura, tivesse já anos de prática de laboratório, de técnica. Pode dizer-se que já tinha uma formação significativa no que respeita à fotografia.

 

Estamos a falar de fotografia comercial.

Sim. O meu pai era fotógrafo comercial. Fotografava o habitual. Sobretudo casamentos.

 

Em Celorico da Beira.

Sim, na Beira Alta.

 

O Alfredo Cunha começa a mudar de ideias em relação à fotografia quando percebe que fotografar raparigas nos casamentos poderia trazer-lhe benefícios.

(largo sorriso) Pois… Nos casamentos e não só (risos). As minhas amigas pediam-me para as fotografar e comecei a perceber que aquilo era uma grande vantagem.

 

E, aos 18 anos, fotografa um catálogo da Triumph.

É verdade. Um catálogo de moda. Foi muito divertido e, dado o contexto da altura, um privilégio para o jovem que eu era então. Mais tarde, após uma viagem à Suécia, descobri que havia outra forma de fazer fotografia. A fotografia social, que é o que faço até hoje. Ganhei consciência política, consciência social e nunca mais deixei de fotografar sob estes pressupostos.

 

A certa altura, sai de Celorico da Beira, vai para a Amadora e trabalha, primeiro no Notícias da Amadora e, depois, no Século. Já tinha, entretanto, vivido noutros lugares, mesmo no estrangeiro, no Brasil. O que o levou a partir?

Não sei…

 

Deixe-me colocar a questão de outra forma. Tinha, já, consciência do valor daquilo que fazia e achava que devia procurar um lugar onde esse valor fosse reconhecido?

Não. Até porque vou para Lisboa depois de várias peregrinações. Com cinco anos, vivi no Brasil. Depois, com dez, em Mangualde, mais tarde na Guarda. Só com dezasseis anos vou para Lisboa, onde vivi praticamente até aos quarenta. A minha vida foi sempre a mudar, o que me deu algumas vantagens na medida em que tive que saber adaptar-me. O mesmo sucedeu na fotografia. Mudei da fotografia comercial para a publicitária, depois para o jornalismo, passei por diversas mudanças tecnológicas, enfim…

 

Essa tão recorrente mudança de terras não acarretava, também, perdas? Quando começava a habituar-se a um lugar, às pessoas, tinha de partir.

Claro que também tinha perdas. Mas isso afetou-me sobretudo na infância. Mais tarde, transformei isso numa vantagem. Tinha amigos em vários lados e fiquei com um conhecimento do país que, de outra forma, não conseguiria. No Notícias da Amadora, comecei a fotografar as causas sociais, o trabalho infantil, as barracas, as fábricas, a cintura industrial de Lisboa…Era uma fotografia militante. Depois sou convidado a ir para o Século.

 

Onde encontra o Eduardo Gageiro.

Sim, foi quem me convidou a ir para lá. Sempre lhe estarei reconhecido por isso. Anos depois, incompatibilizámo-nos na sequência de uma disputa que o tribunal decidiu a meu favor. É um assunto encerrado.

 

Sei que não irá perdoar-me, mas numa entrevista consigo é inevitável abordar o 25 de Abril. Tornou-se o seu mais emblemático fotógrafo.

Claro que é inevitável falar sobre isso. Só que, às vezes, parece que não fiz mais nada na vida (risos).

 

Não é esse o sentido da minha pergunta. Já falou acerca disso dezenas de vezes, mas muitos dos nossos leitores irão, provavelmente, lê-lo em primeira mão. Como foi esse dia?

Estava em casa, com o meu irmão, a ouvir música e a minha mãe chamou-nos dizendo que se estava a passar alguma coisa, tinha ouvido na rádio. Apanhei o comboio e fui para o jornal, onde estava o Mário Zambujal que era chefe de redação. Saí em reportagem, logo às sete da manhã, com o Mário Contumélias.

 

E vai para o Terreiro do Paço?

Vou para o Terreiro do Paço. Ia passar, até, pela rua António Maria Cardoso…

 

Que era a sede da PIDE…

E estava, ainda, guardada pelos Fuzileiros.

 

É uma das histórias mal contadas do 25 de Abril. Os Fuzileiros começam por defender a PIDE.

É verdade. Estão lá dentro com os pides e só quando recebem ordens mudam de posição.

 

Descreva-nos esse dia.

É um dia extraordinário. Muda a vida do país, muda a minha vida, muda tudo…

 

É o dia inicial inteiro e limpo de que fala Sophia.

Exacto. É o poema mais perfeito sobre o 25 de Abril porque resume de forma magistral o que aconteceu. Para mim, o 25 de Abril tem dois heróis. O Salgueiro Maia e o povo de Lisboa. A determinada altura, não houve combates nem aconteceu mais nada porque, desde a primeira hora, o povo de Lisboa envolveu os militares e isso transformou um golpe de estado numa revolução.

 

Precisamente.

Agora, eu era um miúdo com vinte anos…

 

Quando chegou teve noção do que estava a acontecer? Chegou a pensar-se que fosse um golpe da extrema-direita do regime.

Foi o que pensei inicialmente. Aliás, o meu primeiro encontro com o Salgueiro Maia é um pouco caricato.

 

Ele pergunta-lhe porque está escondido.

Sim. Diz-me: “Apareça e identifique-se!”. E acrescentou: ”Estamos aqui para derrubar o regime. Se está a favor deles, são aqueles ali do outro lado!” (risos)

 

É uma história deliciosa.

Foi mesmo assim. Eram todos de Cavalaria e iam falando uns com os outros. O Salgueiro Maia disse-me isso meio a rir. Mas disse-me para ir depressa pois iria convencê-los a mudar de lado, o que efetivamente aconteceu.

 

 

E depois há a célebre história do cabo-apontador José Alves Costa que se recusa a disparar.

E que é aqui do Minho. Há outra história curiosa. Aquele tanque, o do cabo apontador, ficou ali. Às tantas, a meio da tarde, queriam ir embora para a Ajuda, mas não sabiam o caminho. Foi um táxi que resolveu o problema, indo à frente deles, guiando-os…(risos)

 

O Alfredo Cunha disse um dia que o 25 de Abril o fez ter vinte anos para sempre.

Mantenho uma memória muito viva desse dia. Para mim, foi ontem. Lembro-me melhor do 25 de Abril, que foi há quase 50 anos, do que do Iraque, que foi há 20 e onde estive várias vezes. Lembro-me de cada instante desse dia.

 

A sua obra como fotógrafo vai muito para além do 25 de Abril. Fotografou a descolonização, guerras, cidades, festividades, um sem fim de temas. São temas sugeridos? Escolhe-os?

Durante muitos anos fui jornalista. Ia para onde me mandavam. Nem sempre eram lugares muito apetecíveis, mas eu queria sempre ir.

 

Em 2012 abandona o jornalismo. Parece-me que o faz altamente desiludido.

Completamente. Mas não propriamente com o jornalismo. Antes com os patrões da imprensa que compraram empresas com dinheiro emprestado, despediram jornalistas e pagaram indemnizações com dinheiro emprestado, pulverizaram empresas num comportamento a todos os títulos delinquente.

 

Como vem o Alfredo Cunha para Vila Verde?

Venho porque a minha mulher é daqui. Conheci-a na Roménia. Fui lá fazer uma reportagem sobre as crianças que foram retiradas aos opositores de Ceausescu.  A minha mulher estava lá numa missão da Assistência Médica Internacional e foi então que nos conhecemos. Tive um grave acidente de viação e a equipa de que ela fazia parte como médica ajudou-me.

 

E vem para Vila Verde.

Entretanto trabalhava no Público, vim trabalhar para o Porto e estou em Vila Verde desde 1996.

 

E como surge a ideia de fotografar a romaria de Santo António de Mixões da Serra?

Não é uma ideia. Tenho uma obsessão. Estou sempre a fotografar. Não saio de casa sem a máquina fotográfica. Se vou à praia, fotografo, vá onde for, fotografo…Se vou a Mixões, fotografo. Nas férias, fotografo. Daí ter um arquivo imenso. É difícil que aconteça pedirem-me uma fotografia sobre um determinado tema e eu não ter.

 

O seu livro sobre Mixões da Serra comoveu-me profundamente.

É um livro português. É um livro sobre Portugal.

 

O Alfredo Cunha diz mesmo que em Mixões da Serra se encontra Portugal com todos os seus defeitos e virtudes.

Encontramo-nos a nós. O que somos enquanto país exprime-se ali. Como povo, temos virtudes e defeitos. Quando falo de defeitos, refiro-me a uma certa subserviência. Por vezes, menorizamo-nos, diminuímo-nos, mas temos, também, atitudes de grandeza.

 

Em nós, essa subserviência convive paredes meias com a grandeza.

É verdade.

 

O que o impressiona mais na romaria?

Na primeira vez que lá fui, senti-me como se reencontrasse a Beira Alta da minha infância. Um tempo que tinha perdido e reencontrava. As mesmas pessoas, os mesmos rostos, a mesma ligação aos animais, os carros de bois, a mesma forma de vida. Há duas coisas em Vila Verde que me remeteram para o passado: Mixões e o cheiro do rio. A areia molhada e o som da água a correr. Aprendi a nadar no rio Mondego. E na minha terra também havia romarias, claro. A Páscoa celebrava-se com muita intensidade, particularmente as cerimónias da Semana Santa.

 

No caso de Mixões, são fotografias de um Portugal que está a desaparecer…

Vai desaparecer.

 

É curioso. Trata-se de um Portugal que desaparece, vítima de um certo genocídio cultural, mas, ao mesmo tempo, vai permanecendo. Não lhe parece?

Acho que vai mesmo desaparecer. Com a alteração da economia, dos meios de subsistência. Quando, há vinte anos, fui pela primeira vez a Mixões, havia centenas de bois, hoje são residuais…

 

Eu acho que estas suas fotografias mais do que registar, questionam-nos. Queremos saber o que aconteceu aquelas pessoas, como foi a vida delas a partir dali. Nota-se uma preocupação social na sua fotografia.

Sim. E também uma preocupação etnográfica. E, neste caso, a intenção de dar testemunho de um tempo que está a desaparecer.

 

O preto e branco é uma opção?

É uma opção técnica e estética.

 

Concorda comigo se eu disser que há um certo pessimismo nas suas fotografias?

Sim, há um certo pessimismo.

 

Porquê?

É estranho, porque normalmente até sou optimista. Ou melhor, sou um optimista pessimista. Costumo dizer que aquilo que está a correr bem pode vir a correr mal. Nas fotografias deste livro de Mixões não há propriamente pessimismo, mas antes uma tristeza, por vezes velada. Virá da emigração, de quem emigra e não regressa, da saudade… É, repito, um livro marcadamente português. Como dizia o José Cardoso Pires, é a difícil arte de ser português. Muitos europeus dizem que reconhecem os portugueses pelo olhar. Talvez faça parte de uma identidade que está, também, a desaparecer.

 

Se bem preparei esta entrevista, o primeiro sonho do Alfredo Cunha foi uma Nikon F. Quais são os seus sonhos hoje?

Continuo a sonhar com máquinas fotográficas (risos).