“Não há arte sem liberdade”, Capicua

Capicua

Rapper

In Revista TER 44

O sotaque não engana, trai-lhe as origens portuenses. Mas é, também, sinal de autenticidade, de ausência de pose ou de imagem fabricada. Incontornável na música que hoje se faz em Portugal, Capicua não abdica de um discurso militante, interventivo socialmente. Porque, acredita, com o protagonismo vem a responsabilidade. E a arte – na esteira de José Mário Branco – nunca pode deixar de ser uma Ética.

 

Define-se como uma rapper militante e politicamente engajada. Porquê essa opção para a sua carreira?

Não se trata propriamente de uma opção. Tem a ver com a minha forma de estar no mundo. Sempre fui, desde criança, uma pessoa muito Mafaldinha (risos), muito crítica, gosto de pensar sobre a realidade, de a questionar… Por outro lado, sempre gostei de política, as questões feministas sempre me motivaram, bem como a ecologia. Esta postura é, naturalmente, indissociável do meu trabalho. Também fui muito influenciada pela música que os meus pais ouviam: os cantautores de abril como o Zeca Afonso, o Fausto, o José Mário Branco, o Sérgio Godinho… e, para mim, a música sempre esteve associada à palavra, não só como objeto estético, mas também como veículo de discurso.

 

De transmissão de uma mensagem?

Sim. Portanto, para mim faz todo o sentido usar a música como uma ferramenta para mudar o mundo, um megafone para ampliar as minhas causas. Não conseguiria, sequer, fazer de outra forma.

 

O facto de a sua atividade se estender a tantas e tão diversificadas áreas como a música, a escrita, a participação em projetos sociais, os trabalhos em parceria, um disco para crianças ou as crónicas para a Visão tem a ver com essa atitude, esse desejo de intervir?

Tem a ver sobretudo com a minha inquietação, a minha vontade de criar vários desdobramentos para a minha escrita, de aproveitar a música como uma plataforma para intervir indiretamente noutras áreas como os projetos sociais ou, mais recentemente, a escrita para teatro ou tentar transformar as crónicas num livro. São, por um lado, desdobramentos da minha escrita que eu quero ampliar o máximo possível e, ao mesmo tempo, aproveitar as oportunidades que vão surgindo para levar mais longe o meu trabalho social, político e artístico. E são oportunidades muito bem-vindas pois sou, de facto, alguém que gosta de experimentar linguagens artísticas diferentes e de ter um impacto social positivo, pelo que todas as experiências são importantes para que isso aconteça.

 

Acha que faz sentido afirmar que o rap e a cultura Hip Hop em geral podem ser descritos como a música de intervenção dos nossos dias?

Não sei. Provavelmente, essa visão seria otimista de mais. Entendo que há rap que faz o papel da canção de protesto, que dá voz a temas políticos e sociais, mas também rap que fala do amor ou tem uma dimensão de entretenimento não assumindo essa proposta de impacto político. E, evidentemente, podemos encontrar noutros estilos musicais contributos para a música de intervenção. Mas a intervenção não se dá apenas através da música. Está no posicionamento do próprio artista, até porque com as redes sociais acabamos por ter um canal direto com o nosso público, sem intermediários. Há, acredito, um trabalho paralelo à música que se pode e deve fazer do ponto de vista da intervenção política. Há rappers que o fazem, assim como artistas de outras áreas musicais. Não me parece que seja uma questão de género, mas antes de postura, de posicionamento.

 

Há uma velha discussão que coloca em confronto a arte pela arte e a arte politicamente comprometida…

Cada um deve seguir o caminho que acha que faz sentido do ponto de vista artístico. Não há arte sem liberdade. Portanto, impor um engajamento a quem o não tem seria contraproducente e, até, contraditório. A arte quer-se livre e cada um deve fazer a que quer. Agora, entendo que existe uma responsabilidade social que vem com o protagonismo, com a atenção do público e, caso a pessoa tenha consciência política e tenha essa vontade, é bom que seja aproveitada para transformar mentalidades, espalhar mensagens positivas e contribuir para um mundo melhor.

 

É esse o seu caso.

Sim, inspirei-me muito na perspetiva do José Mário Branco para quem a arte é uma estética dado que procura o belo, no sentido mais amplo e filosófico do termo, é também técnica na medida em que se trata de um ofício que é preciso treinar todos os dias, mas, acima de tudo, é ética na medida em que deve ser um compromisso com o contexto em que estamos inseridos.

 

Entende que a sua obra, pela qualidade que lhe é reconhecida, tem contribuído para a dignificação do rap em Portugal?

Quero acreditar que sim (risos). Até porque o rap sempre foi vítima de um certo preconceito e espero ter contribuído – entre outros rappers, evidentemente – para que vigore uma perspetiva mais ampla e menos preconceituosa do que é o rap, do que é a cultura Hip Hop, bem como da qualidade de escrita no estilo de música a que me dedico. Ao ter um público diversificado e acesso a circuitos que não são os habituais do rap, também sinto a responsabilidade de representar a cultura Hip Hop da melhor forma.

 

Tem escrito letras para artistas como Camané, Gisela João ou Clã. Como surgem essas parcerias e que importância lhes atribui?

Normalmente, surgem por convite dessas pessoas. Outras vezes, a convite dos produtores. Atribuo uma grande importância, porque escrever letras é uma das coisas que mais gosto de fazer e adoro o desafio de o fazer para outros artistas, de experimentar outras linguagens musicais. É quase mágico ao ampliar as possibilidades da minha escrita e deixar de estar limitada à minha voz. É muito interessante do ponto de vista artístico e técnico.

 

Fala, acerca da sua obra, em “poesia convertida em música”. Acha que há uma musicalidade intrínseca à poesia ou esta precisa da muleta da música para ganhar ritmo?

Acho que depende. Sempre encontrei nas palavras uma música particular, sempre gostei de brincar com as aliterações, os jogos de palavras, as repetições, as cadências. Desde criança adoro lengalengas, rimas… E a rima já atribui um ritmo, é como se atirasse o texto para um determinado andamento. Isso sempre me desafiou muito, desde pequena, enquanto aprendiz de poeta. Há muita forma de fazer poesia. E também há, claro, músicas cujas letras não são de todo poesia (risos). Ou nem estão perto da poesia. Mas quando as duas coisas se encontram ou quando o poema tem uma musicalidade própria e a canção pode ficar despida de música que a letra resulta na mesma enquanto poema, aí falamos do casamento perfeito.

 

Nos seus primórdios a poesia usava a rima para uma melhor memorização e também para, através do ritmo, prender a atenção de quem ouvia…

É por isso que as crianças gostam de rimas. Ou que o rap, nos seus primórdios, vai buscar muito dessa tradição oral, até de culturas afroamericanas, usando a cadência, a rima, a musicalidade. Entendo que a adesão do público passa muito por aí. Há, nesse âmbito, muitas possibilidades plásticas, de construção, de escrita. Pessoalmente, enquanto artista, interessa-me muito potenciar estes aspetos.

 

O que quer dizer quando fala de uma novilíngua particular? Em diferentes registos, Mia Couto, Caetano Veloso, Rafael Albertí, James Joyce…utilizaram ou utilizam este conceito…

Todos os criadores procuram uma voz própria, um estilo próprio. E isso está, muitas vezes, associado ao vocabulário que usam. Ou melhor, ao vocabulário que criam. A minha música mais conhecida – Vayorken – é um bom exemplo disso mesmo. Trata-se de uma palavra que vem da minha infância, inventada por mim, uma espécie de contributo para o meu glossário particular. A língua é um organismo vivo, pode ser permanentemente reapropriada e reinventada. Cada pessoa que a trabalha vai acrescentando camadas de novidade e de novos usos, registos, possibilidades. Entendo que ter um registo único e inconfundível é a grande ambição de todas as pessoas que escrevem.

 

O tema de fundo deste número da nossa revista é “Tradições”. Não posso deixar de lhe perguntar que importância atribui à tradição enquanto artista.

É uma pergunta de difícil resposta. De facto, não penso muito em termos de tradição nem de inovação. Mas acredito muito – até porque o que me interessa é criar coisas intemporais – que na língua portuguesa existe uma grande tradição de trabalhar a palavra, nomeadamente através da rima, mas sempre de uma forma muito inventiva. Gosto de acreditar que dou o meu contributo para essa tradição de celebração permanente da nossa língua, que participo dessa fonte inesgotável de possibilidades de escrever, de dizer, de cantar. Se há alguma tradição em que me insiro, é nessa.