Evolução e Ideologia

Henrique Cachetas

Diretor da Nova Acrópole de Braga

In Revista TER 25

Diz-nos a ciência evolucionista que a humanidade é o resultado de milhões de anos de transformações sucessivas, acumuladas através de infindáveis gerações.

Todos temos pais, que por sua vez tiveram os seus, e assim sucessivamente, durantes inúmeros séculos e incontáveis milénios. Antepassados quem sabe nascidos em quantos países, em quantas civilizações, em quantas tribos, em quantas cavernas. Quem sabe onde estariam durante os Descobrimentos, no Império Romano ou na construção das primeiras cidades; quem sabe o quanto amaram, o quanto sofreram, o quanto trabalharam para construir a cultura humana.

Cada um de nós, humanos, seja qual for a nacionalidade ou cor de pele, seja qual for a origem social da sua família, seja qual for a sua religião ou opiniões políticas, temos a mesma origem na grande corrente de vida. Uma origem que, como as fontes de água, se esconde nas profundezas do tempo.

Evolução é, portanto, a lei que impregna o tempo e imprime uma aceleração às formas de vida, em direção a algo que, tal como a fonte, também desconhecemos.

Desde os seres mais simples, quase etéreos, que se dividiam por partenogénese, separando de si próprios novos seres (como as bactérias); passando por seres que punham ovos, que ainda sentiam a natureza como inseparável de si próprios; passando por um momento em que se dividiram os sexos em feminino e masculino, numa fase em que devemos ter aprendido (ou começado) a lidar com sentimentos; passando pela autoconsciência, tantas vezes simbolizada pelo fogo, cujo domínio cabe apenas a estes seres que caminham verticais.

Assim se pode tomar atenção ao facto de que a evolução não se preocupou apenas com o plano físico ao criar o ser humano. É preciso que o corpo tenha energia para se mover, tenha sentimentos para se motivar e conectar, e tenha uma mente para conhecer e se guiar no seu caminho.

A mente é das características mais poderosas do ser humano. É a mesma mente que conhece, aquela que se engana; as maiores e rigorosas certezas estão muitas vezes na base dos nossos maiores e irremediáveis erros. É a mesma mente que inventa o raio-x, capaz de guiar a ação de um médico e salvar vidas, e aquela que inventa a bomba de hidrogénio, capaz de se guiar a si própria para a morte certa de milhares. A mente é um ativo muito precioso, pois com ela falamos e entendemo-nos mutuamente, com ela conduzimos e usamos o computador, com ela pintamos e escrevemos, com ela olhamos as estrelas e indagamos a profundidade do céu. A mente é um ativo muito perigoso, pois com ela mentimos e manipulamos, com ela fomentamos a injustiça em nosso proveito, com ela criamos o lixo que polui o planeta e as armas com poder para destruí-lo.

Através da mente concebemos ideologias, elaboramos teorias políticas, tecemos opiniões, persuadimos audiências, influenciamos leitores. O próprio leitor destas palavras, tal como o autor, não está imune à influência do que lê, do que ouve, do que assiste. O grau de influência a que alguém está sujeito depende, entre outras coisas, da sua maturidade, da sua cultura, dos seus interesses e da sua coragem. Onde a influência se torna manipulação nem sempre é fácil reconhecer. Uma criança é facilmente influenciada, e nisso consiste em grande parte todo o processo educativo, assimilando as influências da família, dos professores, das companhias. Também são mais suscetíveis de manipulação, havendo inclusive leis específicas para as proteger de certos atos ilícitos. Muitas vezes falsas notícias sensacionalistas são tomadas como verdade por quem desconhece a matéria nem se preocupa em estudar as fontes mais fidedignas. Frequentemente se empregam grandes quantidades de dinheiro para convencer o público da qualidade de um produto ou do motivo subjacente a uma guerra, nem sempre havendo concordância entre a verdade e a aparência de verdade. Quando um juiz analisa o seu caso, ele tem que exercitar um elevado discernimento para depurar os factos e os argumentos dos advogados, argumentos esses elaborados para fazer valer a sua razão, nem sempre para defender a verdade.

As opiniões, como afirmou o filósofo Platão, estão a meio caminho entre a verdade e a mentira, não sendo nem uma coisa nem outra, e daí terem um valor relativo. No entanto, o mesmo filósofo, não se ficava pelo relativismo que tudo desfaz sob os nossos pés, deixando-nos inseguros em todas as questões, mesmo as mais essenciais; ele afirmava também a existência das outras duas: tal como existe a opinião, também existe a mentira, também existe a verdade.

Daí que os idealistas, os que procuram a verdade e a justiça por cima de todas as coisas, os que anseiam trazer mais bondade e beleza a este mundo tão carente, não se queiram deter no mundo das opiniões nem do jogo de palavras que faça valer os seus interesses. Eles querem encontrar ideias sólidas, claras e coerentes onde possam fundamentar de forma consciente as suas ações em prol da humanidade, de modo a fazê-la avançar no seu caminho evolutivo, não só material, mas também social e espiritual. Querem dar uso a todas as dimensões do ser humano, desde as suas mãos e o seu coração, à sua mente e à sua vontade de transformação para melhor. É necessário, quando se quer fazer algo positivo e útil pelo mundo, que tenhamos claros os nossos princípios, as nossas finalidades, que tenhamos uma visão ajustada e aproximada à verdade do que é o ser humano e de que fatores depende a sua felicidade. Se chamamos ideologia a esse conjunto de ideias capazes de orientar a nossa ação, podemos concluir que a ideologia é um veículo para a transformação do mundo, não desde o próprio mundo concreto, mas desde o que se considera ideal.

Se essa mesma ideologia, essas mesmas ideias, são usadas não por idealistas com finalidades altruístas, mas por interesses obscuros e egoístas, facilmente a ideologia se degrada em veículo de dominação, forma de manipulação e causa de sofrimento. O que começou como um fogo capaz de iluminar os labirintos da vida e conquistar os melhores sonhos, transforma-se em arma incendiária, por vezes com poder para desviar na corrente da vida povos inteiros em direção à destruição.

Não está simplesmente dependente da ideologia, nas suas manifestações em sistemas políticos e reverberações culturais e sociais, o contributo positivo que pode conseguir para o progresso e a evolução humana. Está essencialmente dependente da qualidade dos homens e mulheres que vivem essa ideologia, da honestidade com que buscam as melhores ideias, da generosidade com que as põem em prática, do esforço e sacrifício que estão dispostos a fazer para que, não abdicando dos seus princípios, possam resistir às pressões e tentações do ímpeto decadente do mundo. O essencial é exercitar o discernimento para nos deixarmos persuadir apenas pelo que reconhecemos como justo e verdadeiro, e não pela poderosa mentira disfarçada de causa nobre. O essencial é que existam homens bons, de boa vontade, para que o fogo que arde quando damos asas ao espírito humano se possa transmitir de vela em vela, transformar-se em luz e calor, trazer um pouco mais de paz e de harmonia ao coração da humanidade.