Eucaristia, celebrar a palavra em tempo de pandemia

Jorge Ortiga

Arcebispo Primaz de Braga

In Revista TER 40

Começo por agradecer a oportunidade que me é dada de poder partilhar algumas ideias sobre um assunto de particular importância para os cristãos. Também os não-crentes podem beneficiar com estas linhas, uma vez que a Bíblia tornou-se património da Humanidade, não só como livro literário com diversos géneros mas, sobretudo, porque é também a história de um povo que acreditou que seria feliz se escutasse o que Deus ia dizendo através dos acontecimentos e dos diversos profetas. Para além da sua dimensão sobrenatural, a Sagrada Escritura espelha uma das culturas mais antigas do mundo.

São muitos os aspectos que poderia abordar. Terei de optar. Não poderei falar propriamente da Eucaristia. Seria um argumento com muitas dimensões a considerar. Restrinjo-me a reconhecer que ela é um espaço de escuta da Palavra de Deus. Aí ela é proclamada, acolhida, interpretada e proposta como itinerário e vida.

Também poderia pegar na ideia da celebração. Também aqui há muitas perspectivas a sublinhar. Entre outras possibilidades, celebrar significa realizar algo com tonalidades solenes e, também, recordar datas ou acontecimentos através da festa. Assim é de verdade. Na eucaristia, queremos reviver solenemente a história de amor de Deus pela Humanidade: o grande e festivo acontecimento de Cristo que se ofereceu, morrendo na cruz, e continua a oferecer-se a quem se quer alimentar de um pão que é o Seu corpo. A eucaristia é um momento de grande solenidade e festa que queremos celebrar, com alegria, reunindo-nos em assembleia de irmãos.

Deixarei alguns apontamentos sobre a Palavra e o que ela significa. Encerra um valor incalculável para todos os tempos. A pandemia, ao sublinhar a vulnerabilidade da vida humana, diz-nos que é importante apegar-nos àquilo que permanece. Jesus Cristo alertou no Seu Evangelho “passarão os céus e a terra mas a minha Palavra não passará” (Mt 24, 37 e Mc 13, 31). A pandemia demonstra a precariedade de todas as coisas. A vida é ameaçada mas tudo o que ela encerra apresenta-se como passageiro e sem valor. Perante a insignificância de um pequeno vírus destroem-se todas as desigualdades sociais. As riquezas valem pouco e as vaidades são insignificantes. No meio de tudo isto, a palavra prevalecerá para além de todas estas contingências.

Enumero, então, alguns apontamentos sobre a Palavra. Faço votos que suscitem curiosidade e vontade de entrar mais profundamente nos conteúdos. Esta Palavra não é algo a decorar para conhecer. É um manancial e fonte de muitos horizontes para uma vida a moldar-se por outros critérios.

  1. Na Palavra é Deus que se revela. Fá-lo por obras, acontecimentos e palavras pronunciadas. As obras descritas ajudam a compreender o Seu plano e são como uma espécie de palavras visíveis. As histórias acontecem como eloquência divina, encerrando não só curiosidades mas lições ricas e sugestivas.
  2. O Deus em quem acreditamos não é um Deus distante, inacessível e estranho à nossa vida. A Sua Palavra é um sinal da presença de Cristo, o verdadeiro revelador de Deus, no meio de nós. Quando é lida e proclamada na Liturgia é o próprio Deus que fala. Isto é uma certeza ignorada. Não existe, infelizmente, esta consciência e permanecemos distraídos, alheados, perdendo oportunidades de diálogo com quem, por amor, quer entrar na nossa vida. Um autor cristão escreveu que quando uma hóstia consagrada ou um pedaço de hóstia cai no chão sentimos que devemos recolhê-la com respeito e devoção. Acontece a mesma coisa quando pedaços da Palavra de Deus caem no chão e passam ao esquecimento.
  3. Daí que a Palavra de Deus merece todo o respeito, assim como os livros sagrados que a encerram. Não são livros para colocar simplesmente na estante, nem mais um livro que se coloca na prateleira ou armário. Deve encontrar um lugar de veneração, não só na liturgia, mas também nas nossas casas. Ter uma Bíblia devia ser obrigação para todos os cristãos. Colocá-la em lugar de relevo, mesmo com alguma distinção notória, significa o apreço que lhe dedicamos e mostra a diferença que lhe atribuímos em confronto com outros livros.
    É por isso que, na liturgia, a Palavra de Deus é beijada e, muitas vezes, incensada. São sinais que manifestam a nossa reverência não ao livro em si mas a Cristo, a Deus. Também acontece que, em algumas celebrações mais solenes, o Evangeliário (livro que contém os Evangelhos) serve para dar a bênção.
  1. A Palavra de Deus é sempre uma boa notícia, uma boa nova. Vivemos num mundo de proliferação de ideias e palavras. Fala-se a propósito de tudo e quase sempre nos apegamos às notícias sensacionais e marcadas pela tristeza. Sem nos apercebermos, vamos pintando as nossas conversas com tonalidades demasiado sombrias. É aqui que surge a diferença da Palavra. Quer ser sempre um convite à alegria e à paz. Mesmo quando nos encontramos com passagens dramáticas, apocalípticas, vemos sempre raios de esperança e de certeza de que o sol vai raiar. Deus não é castigador. O Seu amor está em tudo e tudo serve para o mostrar e solicitar que O amemos em todos os momentos e, particularmente, nos mais complicados e enigmáticos. Também a Palavra pode ser luz boa que aponta caminhos de serenidade e tranquilidade.
  2. Reconhecendo a Palavra de Deus na sua originalidade e peculiaridade, sabemos que a sua leitura deve ser preparada. Não é uma leitura como outra qualquer. A Igreja sempre a venerou como presença de Deus e, como tal, teremos de nos despir das preocupações para nos aproximarmos de coração limpo e aberto para a acolher. Isto quando a lemos pessoalmente ou quando a escutamos em ambiente de celebrações litúrgicas. Com a cabeça cheia de muitas inquietações não há espaço para mais nada. Preparar-se significa criar ambiente e mostrar disponibilidade interior para a alegria do encontro.
  3. Sabemos que é Deus que fala e teremos de nos colocar em atitude de escuta. O grande mandamento da lei dos judeus é apresentado por uma introdução. “Shemá, Israel”, Escuta Israel. Deus precede a palavra e, por meio dela, convida e espera uma resposta. Com as palavras que vamos ouvindo quotidianamente torna-se difícil esta exigência de escuta. O silêncio é difícil. Só assim se consegue entender mensagens de amor que são dirigidas a cada um, na sua situação concreta.
  4. Por último, a Palavra de Deus não é para ser apenas lida ou escutada. Ela é proposta para a vida. O Evangelho fala do discípulo que escuta e a põe em prática. Não basta ter noções pormenorizadas contidas na Sagrada Escritura. Podemos conhecê-las de cor. Ficará sempre incompleta a sua compreensão se não chegarmos à intenção de a ir vivendo no meio das interrogações e perplexidades. Ela é Palavra de vida e deverá nortear os passos da caminhada existencial. Nada lhe é estranho. Todas as circunstâncias são terreno fértil onde ela pode florir e dar frutos.
  5. O encontro com a Palavra deverá ser sempre uma aventura pessoal. Mas só em grupo seremos capazes de a entender em profundidade. Nela Deus fala sempre. E, quando nos reunimos, Ele está no meio de nós para ampliar o que sussurra no interior. “Onde dois ou três estiverem reunidos no meu nome, eu estarei presente no meio deles.” (Mt 18, 20). Compreender a Palavra, uns com os outros, com Jesus no meio, é a experiência que todos gostariam de fazer. Pode ser na família. E já muitas famílias o fazem. Pode ser a partir dos movimentos ou serviços pastorais. Tudo pode surgir por iniciativa de alguém que se enche de coragem e convida amigos para constituir este grupo que reunirá nas casas particulares. A Arquidiocese de Braga quer fazer uma experiência neste sentido. Deu vida aos Grupos Semeadores da Esperança. Convido a que perguntemos por esta iniciativa ou a procurem na nossa página. Os subsídios existentes facilitam esta experiência.

Estou a ser longo. Peço desculpa. Deixei pistas. Espero que sejam compreensíveis. Não escrevi como literato ou escritor. Estava a pensar na vida e no concreto das situações.

Volto ao tempo da pandemia para concluir. Veio oferecer-nos mais tempo livre. Teremos de passar horas mais ou menos sozinhos sem saber o que fazer ou passando o tempo em futilidades. Convido a que encontremos tempo para saborear uma história de amor. Façamo-lo sozinhos ou em grupo. Isto poderá ser uma lição a extrair da anormalidade do tempo que vivemos. Celebremos a Palavra, vivendo-a e comunicando-a neste tempo de pandemia. Valerá a pena.