“Descobri, em Vila Verde, discos com as primeiras gravações de fado realizadas em Portugal”, José Moças

José Moças

Colecionador e Editor Discográfico (Tradisom)

In Revista TER 44

É um dos mais prestigiados e importantes especialistas portugueses no estudo e edição de música tradicional. Reconhecendo-o, a Fundação Inatel atribuiu-lhe, em 2021, o Prémio Mérito Cultura. Natural de Estremoz, passou a infância e a adolescência em Portimão, viveu 11 anos em Macau onde fundou a emblemática editora “Tradisom” e, há 23 anos, radicou-se em Vila Verde. Conversar com José Moças é um privilégio que se assinala não por ser de bom tom, mas em nome do mais absoluto rigor. O conhecimento que partilha com entusiasmo, a disponibilidade, a generosidade, a erudição tão ausente de pose que aparece como natural, as histórias e acontecimentos que marcaram a sua vida tornam-no uma figura única. Uma figura da cultura portuguesa. Fica, aqui, o registo possível de uma longa e inesquecível conversa num daqueles dias que redimem a vida.

 

É em Macau que a Tradisom inicia a sua atividade e começa o teu interesse pelo colecionismo. Como é que foste parar a Macau e como é que todo este processo se espoletou?

Vou para Macau a convite do Ministério da Justiça, integrando um grupo de três pessoas a quem foi reconhecida capacidade para melhorar a prática judicial no território. Para além da atividade profissional, comecei a fazer rádio como hobby. A minha ligação à música vem da adolescência, quando pertenci ao Coro da Juventude Musical Portuguesa. E a primeira profissão com que sonhei foi a de arqueólogo. Talvez as duas coisas se tenham conjugado e contribuído para o meu gosto pelo estudo de fontes históricas da música, pela sua edição, pelo colecionismo…

 

Mas houve um episódio, em Londres, que veio a revelar-se decisivo.

(largo sorriso) É verdade. De passagem pela capital inglesa, comprei numa loja, a His Master’s Voice, em Oxford Street, um disco que me despertou a atenção, Fados From Portugal (1929-1931). De regresso a Macau, dei-o a conhecer no meu programa de rádio e foi um enorme sucesso. Posteriormente, contactei o editor inglês, o Bruce Bastin, e assim chegaram a Macau algumas dezenas de exemplares. Pu-los à venda na Livraria Portuguesa e rapidamente esgotaram.

 

E como começas a colecionar?

É, também, uma história curiosa. Uma daquelas coincidências felizes em que a minha vida tem sido fértil. Quando passo o disco de fados na rádio, sou contactado por uma senhora que me oferece meia dúzia de discos de grafonola, comprados em Xangai, com capas chinesas.

 

Eram discos de fado?

Discos de fado. As capas não tinham qualquer relação com o conteúdo. Mas o grande impulso para colecionar foi o contacto com a coleção do Bruce Bastin. É a partir daí que começo a colecionar discos de 78 rotações.

 

E quando fundas a Tradisom?

Saio do tribunal em 1990 e fundo a editora em 1992. Em 1997, venho para Portugal e trago-a comigo.

 

Editas os primeiros discos ainda em Macau?

Sim. O primeiro é o Vozes e Ritmos do Oriente, em colaboração com a Fundação Oriente. Depois o Dinamene e, a seguir, inicio o lançamento dos Arquivos do Fado. Lancei, ainda, o primeiro disco da Tuna Macaense, que nunca tinha gravado. Chamava-se Macau sã assi, Macau é assim, em português, que foi, durante muito tempo, o disco mais vendido em Macau.

 

Voltemos ao colecionismo. A tua coleção de 78 rotações tem hoje quantos exemplares?

Andarão à volta dos 7000 discos. São discos de 78 rotações apenas de música portuguesa, os chamados discos de goma laca, os que eram lidos nas grafonolas.

 

O teu trabalho de investigação vai ser decisivo na candidatura do fado a património mundial da Unesco. E também na candidatura do cante alentejano…

No caso do fado, fiquei fascinado e surpreendido com a coleção de que o Bruce Bastin era proprietário. Estantes repletas, perto de 3200 discos. Senti-me na obrigação de contactar o Ministério da Cultura e aconselhar a compra dada a importância deste acervo para Portugal. Uma coisa única! Era ministro da cultura Augusto Santos Silva.

 

Como correu?

Recebeu-me, escutou-me e nomeou uma comissão para ir a Londres avaliar, ver se haveria interesse na compra. Fiz parte da comissão, juntamente com o professor Pais de Brito, à época diretor do Museu de Etnologia, um homem que organizara uma importante iniciativa de estudo e investigação do fado em 1994, “Vozes e Sombras”, que deu origem a um livro com o mesmo nome. Quando chegámos, o Bruce pôs a tocar uma gravação de 1905. O professor Pais de Brito ficou espantado com a qualidade do guitarrista, um instrumentista de quem nunca tinha ouvido falar, e logo exclamou: “Não preciso de ouvir mais nada! Este homem é anterior e superior ao Armandinho, não estou aqui a fazer nada!”. E fomos embora…

 

Então o estado português adquiriu logo a coleção?

Não. Foi uma luta de anos. A compra só viria a concretizar-se anos depois, por 900.000 euros, era Isabel Pires de Lima ministra. A Tradisom, apesar de ter apresentado proposta para intervir na edição e investigação nunca recebeu resposta. Todo este património foi para o Museu do Fado e foi um suporte importante da candidatura a património mundial.

 

E no caso do cante alentejano?

O Paulo Lima, que dirigiu esta candidatura, já tinha colaborado na do fado, na componente da investigação. Contactou-me e editei os dois discos com gravações do cancioneiro alentejano, algumas delas da minha coleção. Foram estas gravações e o livro que também editei que estiveram na base da candidatura.

 

Outro momento marcante do teu projeto de editor é a “Viagem dos Sons”.

Em termos de projeção internacional acredito que terá sido o mais importante. Em 1995, assisti a uma conferência do professor David Keneth Jackson, diretor do Departamento de Estudos Portugueses da Universidade de Yale, sobre Os crioulos do antigo Ceilão.

 

A Taprobana de que fala Camões, onde os navegantes portugueses chegaram…

Sim, o atual Sri Lanka. O professor David tinha gravações de música de influência tradicional portuguesa cantada no dialeto local. Gravações de 1970. Fiquei deslumbrado. Falei com ele e, com a sua autorização, através do Pedro Sousa Pereira, ilustrador dos meus principais projetos, contactei um técnico muito capaz, José Gabriel, da Rádio Nova, do Porto, que conseguiu melhorar as gravações. Ao mesmo tempo, por uma daquelas felizes coincidências de que já falei, fui contactado pelo diretor da Fundação Oriente, na altura o meu actual amigo João Amorim, que me disse ter-lhe sido apresentada uma proposta para editar gravações de música goesa de influência portuguesa. Escrevi para a Comissão dos Descobrimentos, em Lisboa, propondo a edição de um conjunto de 6 discos com gravações de outros locais (Malaca, Macau, Timor e Sumatra). Resposta: não temos verba disponível.

 

Mas o projeto viria mesmo a concretizar-se.

Um ano depois, em 1996, recebi um telefonema de alguém que me perguntava se não estava interessado em editar essas gravações. Não fazia a mínima ideia com quem estava a falar (risos). Era o professor António Hespanha, ilustre historiador e investigador que, entretanto, tinha assumido a presidência da Comissão dos Descobrimentos. Disse-me para marcar uma viagem para Lisboa e vir conversar com ele, que faríamos a edição. O projeto inicial consistia em seis discos (como referi atrás), mas acabaram por ser doze. Trata-se de um projeto importantíssimo que faz um retrato único da influência musical portuguesa no mundo. Primeiro foi vendido no pavilhão português da Expo 98, mais tarde foi adquirido por quase todas as bibliotecas dos Estados Unidos. Ainda hoje conservo uma carta da Smithsonian, que é o maior complexo de museus, educação e pesquisa do mundo, a elogiar esse trabalho.

 

A edição da Filmografia completa do Michel Giacometti é outro momento destacado do teu percurso como editor.

Sem dúvida. Na Europa nunca se fez nada de equiparável ao nível da música tradicional. São doze livros, com dez dvd’s e três cd’s que viriam a ser distribuídos pelo jornal Público em 2010.

 

Há edições que fazes porque as pessoas, dado o teu prestígio, te procuram, mas há outras que parecem cair-te nas mãos. Serão as tais coincidências felizes de que falas…Foi assim que sucedeu aqui em Vila Verde com uma raríssima gravação do Zeca Afonso, não foi?

É verdade. Íamos no carro do João Manuel, que fez parte do grupo “Raízes”, eu e o Júlio Pereira, de quem sou editor. Às tantas, o João põe um cd a tocar e diz: “Oiçam esta gravação e eu reagi de imediato: “Mas é a voz do Zeca Afonso”!

E o Júlio grita de imediato: “Sou eu que estou ali a tocar cavaquinho!”. Era a gravação de um concerto de 1980, em Carreço, numa sociedade recreativa, feita por um homem chamado Manuel Mina. Gravaram o espetáculo em duas cassetes, a Grândola, o tema executado a terminar, não chega ao fim porque a cassete acaba. A gravação tem uma particularidade raríssima – é que o Zeca explica e faz uma introdução a cada um dos temas antes de começar a tocar.

 

Uma raridade…

Primeiro contactei o Manuel Mina, depois houve uma longa negociação com a viúva e os filhos do Zeca. Mas há, ainda, outra coincidência (risos). Através da internet, soube que o professor Jorge Rino (amigo que conheci na Universidade de Aveiro) tinha uma bobine com a gravação de outro concerto do Zeca Afonso em Coimbra, no Teatro Avenida, em 1968. Foi ali que pela primeira vez interpretou em público o Cantar Alentejano, em homenagem a Catarina Eufémia. As duas gravações dariam origem à edição do José Afonso ao vivo, com texto do Adelino Gomes, livro acompanhado por dois cd’s e um vivnil com os concertos. Editei 5000 exemplares.

 

Em Vila Verde compraste, também, discos que vieste a descobrir serem raros.

Nunca tinha ido à feira de velharias. Mas, naquele domingo, fui. Acabei a comprar 42 discos de 78 rotações a um alfarrabista. Eram todos de música portuguesa. Chegado a casa, peguei num disco que tinha num dos lados uma gravação de fado e a marca “Berliner” e, no verso, um anjo. Introduzi o número de registo do disco numa base de dados elaborada pelo Alan Kelly que permite verificar o ano de gravação de discos antigos portugueses e espanhóis. Para meu espanto, apareceram dois zeros. Pensei que seria engano, dado que o próprio museu do fado e todos os estudiosos apontavam o ano de 1904 como sendo o das primeiras gravações de fado em Portugal. Contactei o Alan, que desfez o enigma. As gravações eram, de facto, de 1900. Portanto, o que tinha em minha posse alterava a própria história conhecida do fado. Estas gravações foram realizadas em novembro de 1900, no Porto, no Hotel Francfort. Através do INET (Instituto Nacional de Etnomusicologia), iniciou-se um processo de investigação que culminará num livro que vou editar e será apresentado, em Julho, no 46.º Congresso do Internacional do International Council for Tradicional Music, que irá decorrer pela primeira vez em Portugal, em Lisboa.

 

A Amália é outra das tuas paixões. E, dessa paixão, resultou a exposição “Amália no mundo” que vamos ter o gosto de receber na nossa escola a partir do dia 17 de abril. Fala-nos um pouco dessa mostra.

Comecei a comprar discos da Amália a partir da conversa com um amigo argentino, Ramiro Guinazu, que é um dos maiores conhecedores da sua discografia. Hoje, tenho todos os LP’s que a Amália Rodrigues editou no estrangeiro. São quase 700 discos e são eles que estão na base da exposição.

 

Que planos tens para a Tradisom durante este ano?

Destaco três projetos. A publicação do livro sobre as primeiras gravações de fado, que já referi. Depois, a edição de um estudo importantíssimo sobre essa figura maior que foi a Severa e acerca da qual nunca houve uma investigação tão profunda. A Severa viveu entre 1820 e 1846. Curiosamente, nasceu exatamente cem anos antes da Amália. O livro será coordenado pelo Paulo Lima e terá a contribuição dos mais significativos estudiosos do fado. Paralelamente, será editada a banda sonora do filme sobre a Severa que o Leitão de Barros realizou em 1931. Gostava de, ainda este ano, conseguir editar a integral desse grande guitarrista que foi Artur Paredes, pai do Carlos Paredes. A ver vamos…