Celebrações, a Música Popular e a Pandemia

Adolfo Luxúria Canibal

Advogado, Músico (Mão Morta), Poeta

In Revista TER 40

A música é, tão só, uma organização temporal de sons e de silêncios. Esta organização assenta numa combinação de elementos sonoros relacionados com as características do som – a sua altura, a sua intensidade, a sua duração, o seu timbre – e com as sequências sucessivas ou simultâneas em que ele ocorre – o seu ritmo, a sua melodia, a sua harmonia –, destinada a produzir no Homem um estado particular de sensibilidade.

Consoante as singularidades desta organização e, sobretudo, consoante a sua finalidade concreta, a música é comummente classificada no Ocidente em quatro grandes grupos, música erudita, música popular, música tradicional e música religiosa. A música tradicional e a música religiosa têm raízes essencialmente funcionais: a primeira, de carácter predominantemente rural e pré-urbano, encontra a sua génese em rituais específicos, nomeadamente laborais, e transmitida oralmente ao longo dos séculos acaba por simbolizar os traços identitários culturais de povos ou profissões, o seu folclore; a segunda, criada, escrita e fixada para servir os objectivos próprios das diferentes liturgias, tem as suas características muito diferenciadas não só em função dessas liturgias mas sobretudo dos cultos religiosos em que se inserem. Por outro lado, a música erudita, desenvolvida predominantemente a partir da música religiosa extirpada da sua índole funcional, é por convenção culta e elaborada, a exigir atitude contemplativa e audição concentrada, e tende a simbolizar a música como Arte. Já a música popular, com uma existência mais recente, grosso modo desde a revolução industrial, está associada a movimentos culturais e extra-musicais urbanos, quase como bandeira identitária, e tem um uso sobretudo celebrativo e de socialização – nela se incorporam, descontextualizados, muitos elementos da música tradicional mas também, amiúde, muitas das problemáticas e achados da música erudita, que aqui encontram um veículo de rápida assimilação e vulgarização.

É na música popular que se encaixa o pop/rock, como também o rap, o jazz ou o blues, mais concretamente na música popular do universo anglo-saxónico, que depressa se expandiu pela música popular de todo o planeta com a aculturação americana do pós-Guerra. Foi assim que diversos movimentos culturais urbanos deixaram de ser fenómenos regionais para se transformarem em manifestações mundiais, uniformizados à escala global por uma mesma imagem, os mesmos hábitos, gostos, atitudes e vivências, e uma mesma música que os une, identifica e distingue de outros movimentos culturais também mundializadas ou restados regionais.

Assim, quando no rock falamos de grunge ou de metal ou de glam ou de punk, mais do que de características intrínsecas à própria música diferenciadoras desses diversos sub-géneros estamos sobretudo a falar de algo mais vasto e de natureza extra-musical, o concentrado de poligrafias culturais que compõe essas diferentes tribos ou movimentos urbanos juvenis. A música é aí apenas mais um elemento da sua construção identitária, mas um elemento importante pois é à sua volta que a tribo se reúne e evolui, que a tribo socializa e celebra. E isto para cada género, sub-género ou estilo da música popular.

De facto, sendo esta uma emanação essencialmente urbana, uma parcela do adubo que fecunda os movimentos culturais e extra-musicais urbanos, do pimba ao rap, do jazz ao pop/rock, do world ao fado – para só referir os mais comuns em Portugal –, ela vai agregar as existências atomizadas que a cidade separa e dar-lhes uma identidade imediatamente reconhecível, atraindo e provocando a socialização a partir do gosto musical comum. Mas também incitando à festa e à celebração que a alegria do encontro com o outro, com um seu igual, sempre proporciona, seja na partilha dos gostos que se revelam coincidentes seja nas manifestações desencadeadas pela actividade musical, como concertos ou festivais, em que, mais importante do que a música em si, é o processo de socialização e de troca de experiências e descobertas que o acontecimento faz vivenciar.

Cada uma destas manifestações tem a sua linguagem própria, consoante a tribo ou o movimento cultural em que se inserem ou a que se destinam – e o farnel mais o tintol do piquenicão pimba apenas aparentemente nada têm a ver com o crawl surfing e o bezegol de um festival rock –, mas todas incorporam uma mesma necessidade de socialização e uma mesma euforia celebratória. É isto a música popular, aquela com que mais prosaicamente nos relacionamos e que mais tempera o nosso quotidiano social.

Ora quando a nossa existência gregária é afectada por uma pandemia que exige a separação física para poder ser combatida, que exige a desagregação do colectivo, são todos os fundamentos da música popular que são postos em causa – de facto, para que serve uma música que vive para juntar e celebrar quando não nos podemos juntar nem celebrar?

E é assim que desde logo os festivais e os grandes concertos – essas exteriorizações da socialização massificada produzida pela música popular – são cancelados ou adiados para um futuro incerto. Mas também a alternativa dos pequenos concertos, com as pessoas obrigatoriamente sentadas e separadas umas das outras por uma distância física fixa, se revela inadequada para a fruição plena da música popular – e nesse sentido pouco atractiva para a maioria do público – pois impede a concretização do fim a que toda a música popular está adstrita, a socialização e a celebração física do encontro.

No limite, apenas a música popular com maior incorporação de elementos musicais da música erudita – aquela música popular comummente designada como experimental ou de vanguarda ou improvisada –, por proporcionar uma fruição mais próxima do deleite da música erudita, a saber a contemplação e a absorção da combinação de elementos estritamente sonoros com que se organiza, pode e consegue ser ainda plenamente fruída numa realidade de distanciamento físico e isolamento social. Mas aí já não estamos no campo da socialização nem, sobretudo, da celebração – nem obviamente no da música popular na sua concepção mais pura!

No entanto, é esta nova realidade de usufruto musical como acto individual e interior que hoje vivemos – e não é por acaso que os concertos de música popular que antes da pandemia se destinavam a margens minoritárias de público, porque mais intelectuais e menos propiciadores de euforias celebratórias, são hoje, em plena pandemia, os que mais constantes sessões esgotadas apresentam, enquanto os anteriores concertos para grande público raramente conseguem agora encher uma sala… Ironias de um mundo virado ao contrário por um pequeno vírus microscópico!