Aprendizagem ao Longo da Vida

Alexandra Aníbal

Departamento de Formação Profssional do IEFP

In Revista TER 31

Ao continuar, assim, a instrução durante toda a vida,
impediremos que os conhecimentos adquiridos nas escolas sejam apagados demasiado cedo da memória, manteremos nos espíritos uma atividade útil, instruiremos o povo sobre as novas leis, sobre as observações agrícolas, sobre os métodos económicos que não deverá ignorar.
Poderemos, enfim, mostrar-lhe a arte de se instruir a si mesmo.


Condorcet , Apresentação à Assembleia Legislativa, 1792

Condorcet, há mais de 200 anos, durante o período efervescente da revolução francesa, fazia a apologia da instrução ao longo da vida como importante contributo para o progresso civilizacional do povo, que, sendo à época maioritariamente analfabeto, poderia, dessa forma, manter-se informado sobre os novos conhecimentos trazidos pelo evoluir da ciência. O filósofo francês enaltecia também a “arte de se instruir a si mesmo”, aquilo a que hoje podemos chamar “aprender a aprender”.

Mas este pensador foi um caso singular, um visionário cujo pensamento alcançava muito para além da época em que viveu. À sua volta e durante os dois séculos que se seguiram à revolução francesa, aquilo que entendemos hoje por Aprendizagem ao longo da vida estava muito longe de ser equacionada como uma prioridade. Passariam mais de 200 anos até que este conceito emergisse nas sociedades ocidentais.

Mudança social e aprendizagem

Durante milénios e até ao advento dos sistemas de ensino, as formas de aprendizagem predominantes nas sociedades ocidentais consistiam nos ensinamentos que passavam dos mais velhos para os mais novos, através de processos de transmissão de saberes e saberes-fazer sustentados em práticas como a observação e a imitação. A realidade social mudava muito vagarosamente e estes modos informais de aprender adequavam-se aos ritmos lentos das transformações nas sociedades tradicionais. De acordo com o sociólogo espanhol Mariano Enguita (2001), a mudança era então suprageracional: de tão lentas, as transformações sociais não eram percetíveis no espaço de uma geração.

Mas sobretudo a partir da revolução industrial, ocorrida em Inglaterra no final do séc. XVIII, as mudanças sociais aceleram, passando a ser claramente percetíveis de uma geração para outra. Enguita (2001) refere-se a essa época como a da mudança intergeracional em que as gerações anteriores, “já não sendo capazes, por elas mesmas, de guiar as novas gerações no processo educativo, necessitam que uma entidade especializada – a escola – assuma essa função”. Começa então a “época dourada da instituição escolar” (idem, 2001) que corresponde a um período ainda recente da vida das sociedades modernas em que à escola cabe a função clara e inequívoca de incorporar a nova geração num mundo diferente do vivido pelas gerações que a antecederam. De facto, com o surgimento dos sistemas de ensino (que se vão consolidando nos vários países ocidentais de formas e com ritmos muito diferentes, a partir do século XIX), a escola vai-se tornando o único contexto válido e socialmente reconhecido de realização de aprendizagens, levando à invisibilidade e à subalternidade dos processos tradicionais de aprendizagem informal.

Mas eis que as últimas décadas veem surgir novas formas de aprendizagem. O ritmo da mudança social e o desenvolvimento das novas tecnologias de informação e comunicação proporcionaram mudanças radicais nas formas de aprender e de ensinar que extravasam os muros da instituição escolar e obrigam a olhar para estes novos modos informais de aprender. Encontramo-nos em plena época de mudança intrageracional (Enguita, 2001), em que se configura a crise do sistema educativo, pois a instituição escolar é incapaz de absorver as mudanças vertiginosas e generalizadas que acontecem na sociedade no espaço de poucos anos. Essas transformações obrigam “a que a maioria da população adulta, pelo menos nas sociedades ditas avançadas – e, em todo o caso, a uma proporção crescente da população em qualquer sociedade – se readapte a novas condições de vida, de trabalho e de socialização” (idem, 2001). A formação inicial, assegurada pela escola, perde peso relativamente à formação permanente, ao longo e ao largo da vida, sendo nesta última que passa a residir, cada vez mais, a aprendizagem dos conhecimentos realmente úteis e aplicáveis no trabalho e na vida social, cabendo sobretudo à escola o desenvolvimento das competências e capacidades que potenciem a aprendizagem ao longo da vida.

Aprendizagem ao longo da vida

É neste contexto em que a instituição escolar vai perdendo progressivamente o monopólio da aprendizagem e do conhecimento que surge o conceito de aprendizagem ao longo da vida. A expressão começa a ser utilizada durante a quinta conferência mundial da UNESCO sobre Educação de Adultos, realizada em Hamburgo, em 1997 , ponto de viragem no reconhecimento global dos modos não formais de aprender. Nesta conferência são abordadas, de forma inédita, as aprendizagens realizadas fora do enquadramento escolar, alargando-se, pela primeira vez, o conceito de educação de adultos ao conjunto dos processos de aprendizagem formais, não formais e informais (UNESCO, 1998). Pouco depois, na sequência do Conselho Europeu de Lisboa realizado em 2000, a Comissão Europeia publica o Memorando sobre Aprendizagem ao Longo da Vida em que este conceito se define como “toda e qualquer atividade de aprendizagem, com um objetivo, empreendida numa base contínua e visando melhorar conhecimentos, aptidões e competências” (Comissão Europeia, 2000). Este documento foi outro dos marcos importantes na ênfase atribuída publicamente às aprendizagens construídas fora da escola, em situações profissionais e de vida.

A necessidade de formalizar a aprendizagem não formal e informal

Ora, o facto de se passar a encarar como válidos todos os modos de aprender – o formal, o não formal e o informal – implica considerar como promotores válidos de aprendizagens outros espaços e contextos, além da instituição escolar, e passar a reconhecer e a validar as aprendizagens neles realizadas. É com este entendimento que no referido Memorando se recomenda a criação, por parte dos Estados membros da União Europeia, de sistemas credíveis e de qualidade para validar competências previamente adquiridas . O sistema português de Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências assumirá, neste contexto, um papel relevante no conjunto de sistemas criados no espaço europeu (CEDEFOP, 2010).

De facto, o sistema português apresenta um conjunto de caraterísticas que o singularizam e que resultam, sobretudo, do facto de se constituir como uma resposta adequada à população adulta portuguesa, subescolarizada mas também subcertificada por comparação com os restantes países europeus. Por isso mesmo, essa população aderiu com grande entusiasmo à proposta de aumentar as suas qualificações a partir do pressuposto, socialmente justo, do reconhecimento da experiência. Ancorado teórica e metodologicamente na abordagem biográfica, utilizando instrumentos inovadores como o Portefólio Reflexivo, operacionalizado por equipas com formação especializada em educação e formação de adultos , integrado num conjunto coerente e vasto de medidas promotoras da qualificação, o sistema nacional de RVCC foi crescendo em complexidade e abrangência, numa lógica quase sempre convergente com a da União Europeia.

Os Centros Qualifica, a Orientação ao longo da Vida e os Processos de RVCC

Desde a sua criação no ano 2000, o sistema nacional de RVCC passou por diferentes fases: de uma pequena rede de Centros RVCC acompanhados de perto pela Agência Nacional de Educação e Formação de Adultos (ANEFA), passou-se, de 2007 a 2010, para uma densa rede territorial que chegou a ser constituída por mais de 500 Centros Novas Oportunidades (CNO), nos quais se inscreveram mais de um milhão de portugueses pouco qualificados. A fase seguinte, a partir de 2011, em tempo de mudança de governo, austeridade e intervenção da Troika, consistiu na extinção destes centros e sua substituição por uma rede incipiente de Centros para a Qualificação e o Ensino profissional (CQEP) com descida drástica do número de inscritos. O atual Programa Qualifica, aprovado em 2016, tenta agora, por sua vez, recuperar o tempo perdido através da constituição de uma rede territorialmente equilibrada de Centros Qualifica, nos quais se retomaram os conhecimentos e experiências acumulados na construção do próprio sistema e se tenta voltar a chamar as pessoas para a qualificação e para a aprendizagem ao longo da vida.

O atuais 303 Centros Qualifica estão vocacionados para a informação, o aconselhamento e o encaminhamento para ofertas de educação e formação profissional de adultos com idade igual ou superior a 18 anos que procuram uma qualificação. Quem se dirige a um Centro Qualifica pode, assim, usufruir de um processo de orientação ao longo da vida, que lhe permite identificar o percurso formativo e/ou de reconhecimentos de competências (escolares e/ou profissionais) que melhor se adequa ao seu perfil individual e às suas motivações e aspirações.

É também nestes Centros que se desenvolvem os processos de reconhecimento de competências escolares e/ou profissionais que visam certificar as competências que os adultos adquiriram em contextos não formais e informais, permitindo-lhes a obtenção de um certificado de qualificação ou assegurando que, após a obtenção de uma certificação parcial, frequentem as unidades de formação de que necessitam para obter essa qualificação. Se a validação de aprendizagens previamente realizadas e o encaminhamento para formação são os principais objetivos dos processos de RVCC, na verdade eles também constituem, por si só, processos de desenvolvimento e de aquisição de novas competências (que decorrem paralelamente ao reconhecimento e validação das aprendizagens previamente adquiridas), o que contribui para incrementar a capacidade de agência individual dos adultos envolvidos e para os mobilizar para projetos subsequentes de aprendizagem ao longo da vida, nos mais variados contextos (Aníbal, 2014)

Outros contextos de aprendizagem ao longo da Vida

Os contextos nos quais se pode aprender ao longo da vida, desde que se esteja desperto para isso, podem ser o ensino formal, através do prosseguimento de estudos, mas também muitos outros espaços (físicos mas também virtuais) que oferecem atividades de aprendizagem como as bibliotecas, os museus, e toda uma variedade de equipamentos com ofertas ao nível da cultura, da ciência e da literacia.

As bibliotecas públicas estão especialmente vocacionadas para a promoção da aprendizagem ao longo da vida, uma vez que dispõem dos recursos necessários para tal: profissionais qualificados habituados a lidar com informação e a prestar orientação e apoio aos utilizadores, espaços seguros e agradáveis devidamente equipados, livros e materiais, equipamento informático e wireless. Atualmente as bibliotecas estão conscientes do papel relevante que podem desempenhar na aprendizagem ao longo da vida (IFLA, 2004) , proporcionando às comunidades que servem (e nomeadamente àqueles que tiveram menos oportunidades ao nível do sistema formal de ensino) o acesso à cultura e ao conhecimento, às práticas de literacia e promovendo ativamente a sua inclusão digital. Constituindo-se como centros comunitários locais que facilitam a aprendizagem em família e a aprendizagem intergeracional, podem alcançar as famílias vulneráveis, contribuindo para interromper os ciclos de baixa escolaridade e pobreza, pela mais consistente das vias – a da aprendizagem.

Referências bibliográficas

Aníbal, Alexandra (2014), Aprender com a vida: aquisição de competências de literacia em contextos informais (Tese de doutoramento não publicada). Disponível em: https://repositorio.iscte-iul.pt/bitstream/10071/8889/3/TESE%20Alexandra%20Anibal.pdf

Cavaco, Cármen (2007), “Reconhecimento e validação de adquiridos experienciais – A emergência de actividades profissionais na educação de adultos”, Revista Portuguesa de Pedagogia, p.p. 133-150, dez. 2007. Disponível em: http://impactum-journals.uc.pt/rppedagogia/article/view/1211

CEDEFOP (2010), 2010 update of the European Inventory on Validation of Non-formal and Informal Learning Executive summary of Final Report.

Comissão Europeia (2000), Memorando sobre Aprendizagem ao Longo da Vida, Bruxelas, Comissão Europeia. Disponível em: http://dne.cnedu.pt/dmdocuments/Memorando%20sobre%20Aprendizagem%20Longo%20da%20Vida%20pt.pdf

Enguita, Mariano F. (2001), Educar en Tiempos Inciertos, Madrid, Morata.

IFLA (2004), The Role of Libraries in Lifelong Learning. Disponível em: http://archive.ifla.org/VII/s8/proj/Lifelong-LearningReport.pdf.

UNESCO (1998), V Conferência Internacional sobre Educação de Adultos: Hamburgo 1997. Declaração Final e Agenda para o Futuro, Lisboa, Ministério da Educação, Secretaria de Estado da Educação e Inovação. Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0012/001297/129773porb.pdf.