A regra e o justo – o lugar da religião

João Manuel Correia Duque

Presidente da Universidade Católica Portuguesa de Braga

In Revista TER 23

É já uma banalidade afirmar que o ser humano é um animal social. Mas não é menos verdade, por ser banal. É claro que não se trata de um modo instintivo, automático, dito natural, de estar inserido em sociedade, como se cada sujeito fosse apenas um nó na engrenagem do todo social e omnipotente. A compreensão do sujeito humano como sujeito de liberdade pessoal implica compreender a sua inserção social como processo dinâmico – por vezes tensional – entre pura realização de regras e exercício de liberdade em relação às mesmas regras (dimensões que não estão necessariamente em contradição, já que posso respeitar regras livremente). Nesse sentido, cada sujeito humano não é apenas o resultado do cumprimento de normas sociais – nem apenas o resultado de decisões e comportamentos individuais – mas a combinação complexa destas duas dimensões, sem ser possível determinar qual está em primeiro lugar. A próprias regras, aliás, nasceram da elaboração humana, por isso de decisões pessoais, mesmo que em muitos casos não consigamos determinar quando e como isso aconteceu (como acontece com as regras da linguagem, protótipo da própria pertença social de cada sujeito). O “contrato social” não é historicamente identificável.

Ora, a questão mais funda, que se levanta na consideração de todo este processo, é a de identificar as razões que levam à construção de regras, ao seu respeito – por decisão individual – e às vezes ao seu desrespeito – também por decisão individual. De um modo genérico, poderíamos dizer que a resposta a esta questão nos levará ao problema da justiça. Ou seja, os humanos agem – respeitando ou desrespeitando regras – de acordo com o que consideram ser justo. A própria elaboração de regras de conduta pressupõe que estas correspondam ao que determinada sociedade considera ser justo. Mas é precisamente na relação entre o que se considera ser justo e as regras da sua aplicação que, por vezes, o justo exige o desrespeito das regras, originando um novo modo de comportamento, considerado mais justo – e que, no caso de se afirmar socialmente, se pode transformar em nova regra, corretora da anteriormente violada.

Não é fácil definir o que seja a religião. Mas poderíamos considerar, sem entrar em muitos pormenores, que todas as religiões vivem na permanente tensão entre a regra e a justiça. De um modo geral, aquilo que uma religião considera como Deus ou divindade, constitui para os respetivos fiéis o fundamento universal da própria justiça. Algumas religiões – ou algumas versões da religião – consideram que esse fundamento é o autor direto das próprias regras, sejam regras rituais sejam regras de conduta. Nesse caso, a obediência à justiça, pela obediência ao seu fundamento, passa pelo cumprimento rigoroso dessas regras, sem mais. Trata-se de religiões – ou de modos de ser religioso – ritualistas ou legalistas. Ser religioso significaria simplesmente respeitar essas regras e o seu desrespeito significaria, por seu turno, completa infidelidade.

Mas há tradições religiosas e interpretações do religioso que, embora considerem as regras marcos importantes na aplicação do que é justo (daquilo que Deus “quer”, noutra nomenclatura), consideram haver sempre um certo desajuste entre a regra concreta e a justiça, como sua orientação. Nesse âmbito, a obediência à justiça, inspirando-se em Deus, pode implicar desobediência à regra, precisamente como obediência a Deus. Normalmente, considera-se ser a consciência o lugar onde se pode perceber o critério de definição do que será justo, para se poder avaliar da adequação ou não à regra.

Como as regras de conduta são sempre o resultado de uma adaptação da justiça a condições de lugar e de tempo muito específicas, é normal que elas não esgotem a realização da justiça. Deus, fonte da justiça, é sempre maior do que todas a aplicações em forma de regra. Nesse sentido, na perspetiva do religioso – que é a perspetiva do fundamento das coisas, e não apenas da sua aplicação parcial – a regra está sempre sujeita a comprovação e a transformação. O dinamismo religioso implica sempre alguma superação da regra, pois é sempre excessivo em relação a qualquer regra.

Por outro lado, a nossa constituição histórica, situada sempre numa cultura e num leque de relações sociais, implica a organização da justiça – daquilo que deve ser feito – em regras de conduta. Por isso, não pode existir uma atividade religiosa sem regras de conduta, seja do ponto de vista ético, seja do ponto de vista ritual. Diríamos então que a religião é um campo privilegiado para a relação dinâmica entre a regra e a sua superação – entre o justo e a sua aplicação possível. Nela revela-se a própria condição humana, como permanente procura da justiça, nas suas incarnações possíveis, que são as regras que vamos formulando, que vamos cumprindo e que vamos superando.