A Inspiração da Inspiração

Miguel Pedro

Compositor, Baterista
(Mão Morta, Mundo Cão)

In Revista TER 35

Um homem, um músico e filósofo, Safi al-Din al-Urmawi, nasceu na Pérsia no sec. XIII e procurou, no seu longo percurso de vida, a fonte de inspiração para a sua música, a música que tocou, a que compôs e sobre a qual escreveu. Morreu em Bagdade, aos 80 anos de idade, em 1294, e pelo seu trabalho ficou conhecido; e também por ser um dos maiores nomes da história da música árabe. Não sabemos se encontrou a fonte de inspiração por que tanto procurou, mas sabemos, com a certeza da história, que foi ele próprio fonte de inspiração para os músicos que depois dele vieram.

Nasceu em Urmia, no atual Irão, em 1214, e bem cedo mostrou ser diferente dos outros miúdos: nunca quis saber dos feitos dos antigos guerreiros, nem brincar às batalhas com os seus primos e amigos. Gostava de ser pastor e mesmo quando não era a sua vez de levar as ovelhas e as cabras para os montes que rodeavam a cidade, ele oferecia-se. Além de ganhar os favores dos seus primos, que agradeciam tal disponibilidade, esta atividade permitia-lhe ficar dias e noites nas montanhas, a ouvir e a imitar o chilrear dos pássaros e o estranho silêncio das pedras.

Com 14 anos, a família enviou-o para Bagdade, o grande centro cosmopolita do Califado Abássida, com a esperança que ele fosse escolhido para a Nizamya, a Casa da Sabedoria, a maior instituição de ensino do mundo árabe, percursora da universidade moderna, local especializado nas traduções da antiga sabedoria grega, romana, persa, assíria, fenícia, mediterrânea, arquivo de centenas de anos de tradição escrita, onde eram encaminhados todos os livros e documentos do mundo árabe. De Urmia a Bagdade era uma viagem bem longa. Normalmente, demoravam 3 meses, mas a caravana em que seguia Urmawi demorou mais de 6 meses até chegar ao destino. A culpa foi de um inverno gelado e chuvoso. Dizem os cronistas da época o Rio Eufrates se tornou uma estrada de gelo e outros referem que nesse ano, no inverno, o grande lago Therthar transformou-se numa imensa planície branca.

Al-Urmawi e os seus companheiros de viagem tiveram que buscar abrigo numa pequena aldeia junto de Tuz Khurma. Foram bem acolhidos e por lá ficaram mais de dois meses. Foi nessa aldeia, de nome branco como a neve, que Urmawi – confessou o próprio muito mais tarde – decidiu o percurso da sua vida: iria ser músico e tentar, pela música, tocar as almas dos homens. Existia na aldeia um velho tocador de Ud[1], sempre acompanhado pelo seu meio-irmão, cego e tocador de tambor. Urmawi seguia-os para todo o lado. E nesses dois meses de reclusão forçada pelo rigor do inverno, Urmawi pode ver o duo de velhos a tocar em várias ocasiões. A população da aldeia era dada à folia e, impedida de fazer saídas muito longas da aldeia cercada por neve e gelo, os aldeões dedicavam-se às festas: festas de casamentos, de aniversários, festas em honra dum deus, duma deusa ou de um deus-animal e mesmo funerais. Urmawi viu tudo e absorveu todos os sons, os ritmos, as melodias e as harmonias daquele estranho duo de velhos. Um dia, já com o inverno a despedir-se e o Rio Eufrates a regressar ao seu estado líquido, o pequeno al-Urmawi, depois de preparar a sua pequena mochila de pele de cabra, ganhou coragem e foi falar com o velho tocador de Ud:

Diz-me, músico, de onde vem a tua música? – perguntou.

Sai-me dos dedos. Nem sequer penso nisso. Apenas mexo os dedos e a música sai do Ud. – replicou o velho.

Vem da tua alma? Não te sai da alma? Como podem os dedos conter música? – inquiriu o jovem, de forma ansiosa.

Nada sei de almas. O meu avô tocava Ud e o meu pai também. Ensinaram-me e eu toco Ud desde que me lembro. Sempre me disseram para o tocar e eu faço-o todos os dias, muitas horas por dia. – respondeu.

Mas como consegues que a tua música seja alegre nos aniversários, triste nos funerais e heroica quando celebramos os deuses. As pessoas riem ou choram quando tocas, eu vi. Como o fazes? Há música que seja triste e alegre e heroica só por si? Mas não são estes estados próprios da alma e não dos dedos? – argumentava al-Urmawi.

Sempre toquei. Apenas coloco os dedos em sítios diferentes: quando quero que a música seja triste, coloco-os aqui (e mostrou os pontos no braço do instrumento); quando estou em ambientes de festas, coloco os dedos aqui. Aumento o ritmo e peço ao meu meio-irmão que bata no seu tambor com maior rapidez e mais força. Só isso. É como me ensinaram, sempre foi assim. – respondeu o velho, já a denotar impaciência.

Deste encontro, al-Urmawi trouxe a profunda convicção de que o velho lhe escondia algo. De que teria que haver algo na alma dos verdadeiros músicos que, se fosse tocado, se fosse estimulado, faria a música sair perfeita. E o velho tocador tinha esse mistério consigo. E não podia ser só o efeito daquelas plantas de fumo que o velho tocador Ud e seu meio-irmão cego fumavam persistentemente no seu cachimbo de água. Teria que haver algo mais.

***

Chegado a Bagdade, Al-Urmawi não só entrou na Casa da Sabedoria como cedo demonstrou as suas aptidões intelectuais que lhe permitiram ter na instituição uma ascensão fulgurante. Aprendeu línguas árabes e ocidentais, história, literatura, filosofia e caligrafia. Foi como calígrafo que fundou, no início, a sua carreira na grande cidade. A sua refinada técnica da escrita, aliada ao seu profundo conhecimento das línguas clássicas ( o grego e o romano) e ao gosto pela filosofia fez com que o Califa abássida al-Mustasim o tivesse convidado para ser calígrafo-mestre na nova biblioteca de Bagdade que criou. Mas foi como músico que chamou a atenção da família Juvayni[2], especialmente de Shams al-Din Juvayni e do seu filho Sharaf al-Din Harun Juvayni, que o acolheram como mecenas da sua obra. Al-Urmawi tinha-se tornado um excelente tocador de Ud, desde a sua chegada a Bagdade. E não só. Dedicou-se à construção de instrumentos, criou novos modelos de Ud, com variações de timbre e de afinações. Dedicou-se à análise das tradições musicais árabes, mas também, pelo contacto com os antigos escritos, dos modos musicais e ritmos gregos e romanos. Compôs dezenas de canções que foram tocadas por si e por outros músicos em festas, na corte do califa, nas ruas, nas homenagens aos heróis mortos em combate. Mas a ideia de que haveria uma fonte de inspiração para a música perfeita moldou sempre o seu trabalho e tornou-se uma obsessão. E foi na leitura (e transcrição sistemática, enquanto calígrafo do califa) dos textos de Platão, Aristóteles, Heráclito, Diógenes Laércio (sobre os pitagóricos), de al-Farabi, de Abu al-Walid Muhammad Ibn Ahmad ibn Muhammad ibn Rushd ( que veio, séculos mais tarde, a ser conhecido como Averróis), de Avicena e de tantos outros pilares do saber universal que al-Urmawi tentou discernir a fonte de inspiração da música e da arte. Um eterno, um abstrato, algo quase divino que toca na alma do artista, uma espécie de predestinação onírica ou divina. Nesta sua ânsia de procurar este modelo de inspiração, al-Urmawi trabalhava 15 horas por dia, 8 horas nas leituras e traduções e 7 horas no aperfeiçoamento da sua técnica de tocador de Ud e na análise dos sons, dos ritmos, das melodias e das harmonias.

 Procurou o “modelo inspiratório” (como lhe chamou) nos pitagóricos que lhe revelaram o carater numérico dos sons musicais e a sua relação com o movimento dos astros e com Aristóteles, conhecido para o mundo árabe de então como o Primeiro Mestre, tentou perceber na musica as causas materiais, formais, eficientes e teleológicas. Em Averróis, que comentou Aristóteles sobre traduções de traduções, encontrou a ideia de que podemos manter a análise ao nível da razão e não precisamos de Deus para perceber o mundo, a física, a lógica ou a música. A origem da inspiração teria que estar no homem ou na natureza. Em Al-Farabi (o Segundo Mestre) Urmawi descobriu a importância de se escrever sobre a música, de se poder fixar os sons e os ritmos com símbolos escritos, fossem números ou figuras geométricas. Solidificar e assegurar a perenidade da música, da que compôs e da que outros irão compor. Leu e transcreveu para árabe, grego e latim o seminal livro de al-Farabi “Kitab al Musiqa” ( O Livro da Música), que fala sobre os princípios filosóficos da música, sobre as suas qualidade físicas e cósmica e sobre as suas virtudes terapêuticas, os efeitos da música na alma humana (lembrou-se muitas vezes do velho tocador de Ud….).

Mas fez muito mais. Fundou uma escola de música e filosofia (para al-Urmawi, era impossível pensar uma separada da outra), a que chamou “Akadimiat Alsawt Walmuerifa “ (Academia do Som e do Saber), na qual, inspirado pelo modelo pitagórico, os alunos eram obrigados a uma série de regras e procedimentos: nos cinco primeiros anos, os alunos eram submetidos à prova do silêncio, limitando-se a escutar as lições do professor, a identificar os vários sons dos vários instrumentos, a treinar o ouvido às variações tímbricas e melódicas das centenas de instrumentos, sem pedir explicações ou perguntar fosse o que fosse. Era a fase acusmática da preparação (aprender a ouvir). Depois aprendiam a técnica do instrumento que escolhiam, ao mesmo tempo que liam os textos dos clássicos. No fim, aprendiam a matemática e a física e iniciavam a fase da composição. O processo de formação destes alunos demorava, em regra, dez anos. Muito inovador era o facto das mulheres poderem ser admitidas como alunas. Uma das alunas da Akademiat,  de nome Luhaz, tornou-se famosa por ter uma voz que diziam ser de sereia, que serviu para encantar o próprio califa al-Mustasim, que fez dela uma das suas esposas preferidas.

Também neste período, em que acumulava as funções de calígrafo-mestre do califa, fundador e mestre na Akademiat, tocador de Ud e de outros cordofones e que persistia na sua mítica busca pelo seu “modelo inspiratório”, que al-Urmawi escreveu dois livros que se tornaram a base de toda a música árabe e ainda nos dias de hoje são utilizados:  o “Kitab al-Adwar” (O Livro dos Modos) e o Risalah al.Sharafiyyah fi l-nisab al-ta lifyyah” ( Tratado Sharafiano das Proporções Musicais).  O primeiro livro, considerado o livro de musica mais influente de toda a história da música árabe, foi concebido como um compêndio de todo o conhecimento musical da sua época e foi escrito para ser usado como manual na sua Akademiat. Nele se abordam todos os aspetos da música, os tons musicais ou notas (angham), os vários modos da música árabe, os inúmeros ritmos e a sua formação, estratégias para compor musica (teoria da composição). Mas nem uma palavra sobre almas, inspirações divinas, etc… No segundo livro, de inspiração pitagórica, al-Urmawi propõe a utilização de símbolos geométricos para escrever ritmos, a divisão da oitava em 17 tons, atribuindo a cada tom uma letra árabe, a utilização de nomenclaturas para melodias, a descrição e análise dos modos, etc…

A sua Akademiat era, em meados do sec. XIII, o centro de todo o estudo sobre música e filosofia no mundo árabe e sob o alto patrocínio do seu mecenas Shams al-Din Juvayni, al-Urmawi construiu um espólio invejável de livros, conseguindo utilizar a sua influência junto do Califa para transferir, da Grande Biblioteca de Bagdade para a sua biblioteca pessoal, centenas ou mesmo milhares de livros e documentos dos seus clássicos favoritos. Além disso, ao longo de 10 anos procurou reunir na sua instituição académica todos os instrumentos de todas as culturas musicais, enviando emissários em verdadeiras caravanas recolectoras à Turquia, Itália, França, Grécia, China, Egipto, Índia, Mongólia, etc… Recolheu phorminxs, cítaras gregas, cítaras de berço, liras apolíneas, harpas, alaúdes, aulos, siringes gregas, flautas diversas, címbalos e crótalos gregos, xylophons, guitarras curtas, tubas romanas, lituus, buzinas e tíbias antigas, tambores persas, chirimas duplas da India, oboés da Palestina, tambores de mão, harpas de ombro egípcias, pratos de pinças e tambores de vaso, tamburas e shannais duplos indianos, trompas de búzio e muitos outros.

Em 1250, o nome de al-Urmawi, mestre filósofo, músico, compositor e exímio tocador de Ud, era já conhecido em toda a Pérsia e mais além, desde as frias estepes de Genghis Khan, na Mongólia, passando pelo Mediterrâneo, até ao centro da Europa cristã. E foi esta fama que lhe salvou a vida.

***

            O Médio Oriente, naqueles tempos, era, por certo, a zona de maior prosperidade, económica e cultural, do mundo. Foi, por isso, palco de muitas lutas pelo poder e intriga política. A guerra e o comércio andam sempre de mãos dadas. O califa Nácer, que governou de 1180 até 1142 a zona sul da Mesopotâmia, homem de grandes ambições políticas, fez um tratado que se mostrou fatal: contratou mercenários mongóis para proteger o seu califado. A influência mongol foi-se alastrando, tendo culminado, com a ascensão ao poder do líder mongol Hulagu Khan, nas invasões mongóis da ásia oriental. Hulagu Khan era neto de Genghis Khan. A sua mãe, uma princesa de nome Sorghaghtani Beki, era muito determinada e influente na política mongol e todos os seus filhos foram lideres. Era uma cristã, da igreja nestoriana, e mulher de grande cultura. Conhecia os clássicos, e tinha na música a sua paixão. Quando o seu filho Hulagu chegou às portas de Bagdade para invadir a cidade, em novembro de 1257, a sua mãe insistiu em estar junto dele. Tinha ouvido falar de um tocador de Ud que – diziam-lhe os intelectuais mongóis – tinha alcançado a perfeição no ensino da música e da filosofia.

            Em fevereiro de 1258, já com o exército mongol dentro da cidade, a princesa Beki convenceu o seu filho a poupar al-Urmawi e a sua Akademiat. Hulagu tinha tanto de crueldade como de paixão pela música e não só poupou al-Urmawi, os mestres da Akademiat, alunos e suas famílias, bem como todo o espólio da instituição, e ainda promoveu al-Urmawi a conselheiro e tornou-se mecenas da escola. Nesse ano, Bagdade foi destruída e saqueada, Hulagu matou todos os políticos, intelectuais, administrativos e clérigos e fez pirâmides com os seus milhares de crânios; destruiu a Grande Biblioteca de Bagdade e queimou os livros ou atirou-os ao Rio Tigre, cujas águas ficaram negras com a tinta dos livros afogados; saqueou museus, mesquitas, bibliotecas e palácios e fez mulheres e crianças escravas da sua corte. E, nesse ano de 1258, todas as semanas, após os saques e os massacres, Hulagu e a sua mãe iam à Akademiat ter com al-Urmawi para que este os presenteasse com concertos e palestras sobre os grandes mestres do pensamento. E, contam os cronistas, Hulagu chorava, com a mão dada à sua mãe, emocionando-se com as canções que saíam do Ud de al-Urmawi.

Em 1259, um ano após a destruição de Bagdade, Hulagu abandonou a cidade a si própria, colocou na liderança um governo fantoche e prosseguiu a sua ânsia de conquista para a Síria. Bagdade ficou com a população reduzida a metade, sem instituições e sem as riquezas de outros tempo. Mas a fama de al-Urmawi, o tocador de Ud que tinha conseguido, com a sua música, “mungir os olhos de Hulagu, o Mongol até às lágrimas[3], ficou ainda maior, percorreu distâncias até à longínqua Europa. Além disso, a Akademiat tinha, agora, o maior repositório de textos clássicos e dos mestres árabes da ásia, o que aumentava o interesse dos estudiosos de outros países. Começou a ser um local de peregrinação obrigatório para intelectuais e músicos árabes e cristãos e foi crescendo de influência e de tamanho. Em 1270 a Akademiat ocupava dois quarteirões e um palácio em Bagdade, e tinha cerca de 3 mil alunos, 200 professores, 300 músicos residentes, fazia recitas diárias, concertos semanais e, uma vez por ano, juntava mais de 200 músicos para tocarem as músicas que al-Urmawi havia composto nesse ano. O grande mestre e tocador de Ud continuava a trabalhar incessantemente, procurando qual seria a fonte de inspiração universal da música, investigando nos textos e nas canções, traduzindo clássicos e apurando a sua técnica. E, com a ajuda das suas quatro esposas, geria a Akademiat.

***

No verão de 1285, o jovem prodígio da Escola de Notre Dame de Paris[4], de nome Johannes de Garlândia[5], então com 15 anos, percorria as ruas de Paris e assistiu, totalmente maravilhado, a quatro músicos de rua que, tocando vários instrumentos, conseguiam articular polirritmias, polifonias, cânones, e outros artifícios musicais de uma forma que ele nunca tinha ouvido. Eram homens morenos que liam a música que iam tocando de papeis espalhados no chão. Falou com eles. Eles contaram-lhe que eram persas e que foram alunos de um grande mestre que ensinava a música, como se tocava, como se escrevia e que as músicas que eles tocaram tinha sido escrita por ele e desenhada nos papéis que se encontravam no chão. “Chama-se Safi al-Din al-Urmawi e tem (ou tinha) em Bagdade uma escola”. – explicou o persa. “Ainda é vivo?”, perguntou Johannes. “Não sabemos. A Pérsia é um país de guerras e quezílias e Bagdade é uma cidade sem governo. E o Mestre já estava velho quando de lá saímos, há 6 anos.”, responde, com tristeza, o músico persa.

Johannes de Garlândia, cuja família era nobre, tinha muitas posses e muita influência na corte, decidiu nesse momento procurar o Mestre Persa e saiu nesse mesmo ano de Paris com destino a Bagdade. Com ele partiu uma comitiva de 4 criados, 3 cozinheiros, 6 moços de estrebaria, 2 alquimistas e 200 soldados, pois a Pérsia era um local perigosos. Chegou a Bagdade em finais de 1286 e encontrou uma cidade viva, a ser reconstruída com entusiasmo e onde cristão, nestorianos, muçulmanos e budistas conviviam de forma pacífica e mesmo – coisa estranha – casavam entre eles.

Passou seis meses na Akademiat de al-Urmawi: aprendeu técnicas de Ud, de percussão, apaixonou-se pelas técnicas do  mítico órgão hidráulico grego, leu os clássicos, deixou-se levar pelo misticismo dos pitagóricos e pela sua música das esferas celestes, leu e releu o “Kitab al Musiqa”,  de al-Farabi e, principalmente, entregou o intelecto à nobre tarefa de manter perene os sons musicais com símbolos gráficos e matemáticos, que Al- Urmawi magistralmente propôs no tratado “Kitab al-Adwar” e no Risalah al.Sharafiyyah fi l-nisab al-ta lifyyah”. E conversava muito com o velho mestre persa, absorvendo todo o seu saber sobre a música e o mundo.

Numa noite de verão, com o vento quente do deserto a sentir-se por toda a cidade de Bagdad, Johannes de Garlândia conversava com al-Urmawwi:

Mestre, sinto que levo daqui todo o conhecimento do mundo. E tudo o que preciso de saber para a minha música – disse o europeu.

Se assim pensas, jovem, não te agoiro futuro como músico. – disse o persa. – Nunca nada está fechado, nem enquanto vives, e, mesmo depois de morreres, o que tu deixas, é o que os outros levam. Durante muito tempo, quase toda a minha vida, também pensei como tu. Supunha que existia uma fonte abstrata, imóvel e etérea na qual todo o músico pudesse beber a sua música. Pensei ter vislumbrado, por várias vezes, sombras e projeções destes momentos inspiratórios: no velho tocador de Ud da minha infância, nos escritos gregos, nas práticas ascéticas dos pitagóricos, em al-Farabi, etc.. –  continuou o velho.

– E não existe? Como é possível que a música maravilhe as pessoas? E que reflita a ordem matemática dos astros? Tem que haver algo mais do que parece…- insistia o jovem francês.

Se existisse, eu já o teria encontrado. Toda a minha vida trabalhei nos sons, nos textos, nos ritmos. Estudei, investiguei, pratiquei. Compus centenas de canções, árias, poemas cantados, hinos dos heróis, temas fúnebres. E sempre na ânsia de encontrar o meu modelo inspiratório. Só muito mais tarde na minha vida, já com os dedos tolhidos pelas artroses e a vista embaciada, percebi que a minha inspiração sempre foi o trabalho dos outros: dos músicos que ouvi, dos filósofos que li, dos físicos que conheci. E, depois de erigir a Akademiat, depois de ver tantos e tantos alunos a alimentar-se do meu trabalho, percebi que todo o meu trabalho poderá também servir de inspiração a outros como eu…ou como tu. – sorriu o velho tocador de Ud.

Dizes, então, que a inspiração do músico é o trabalho? – inquiriu o francês.

Sim, digo isso. É o trabalho dos outros e o trabalho que fazemos por causa do trabalho dos outros, do efeito que o trabalho dos outros tem em nós. Os outros mestres são a nossa inspiração e trabalhamos para sermos a inspiração dos outros. É assim que a música cresce e é assim que toca as pessoas. – disse al-Urmawi.

Sim, percebo isso, Mestre. Tudo o que fizeste, tudo o que me ensinaste, aquilo que pude aprender de outros mestres, de outros tocadores, tudo isso me enche de uma energia tão grande, que só me apetece compor, tocar e escrever. E as ideias que comigo partilhaste sobre escrever a música que ouvimos em papel faz-me fervilhar de outras ideias, que nascem em mim. – disse o jovem Johannes.

Chamei a isso “criatividade”: o fruto do nosso trabalho, inspirado pelo que nos rodeia. Mas os clérigos do Imã de Bagdade ameaçaram-me com a forca, pois dizem que a criatividade só existe em Deus e não nos homens. – sussurrou o Mestre persa.

Não creio que assim seja. – disse Johannes.

Eu também não – concordou al-Urmawi.

E juntaram-se os dois, a tocar Ud e tambor, pois o velho mestre, naquela noite, talvez por efeito do vento quente do deserto, sentia as suas mãos leves e sem entraves. Tocaram toda a noite, interpretando velhas e novas canções, inspirando-se nas notas musicais que pareciam sair dos astros.

[1] Instrumento de cordas, muito semelhante ao alaúde medieval.

[2] A família Juvayni, de origem persa, ficou conhecida por, ao longo de séculos do Califado Abássida, ser a principal mecenas da cultura. É tida pelos historiadores como o motor do grande apogeu cultural da pérsia e do Iraque, desde o califa abássida Harun al-Rashid ( sec.IX) até à queda do califado abássida, em 1258, às mãos dos mongóis. Mas mesmo depois da destruição e saque de Bagdade, a família continuou a ter grande influência na vida cultural e política, tendo alguns dos seus membros ocupado lugares de vizir  e de governador mesmo durante a ocupação mongol. Na altura, como hoje, o dinheiro mandava mais….

[3] Canção persa, sec. XIV, autor desconhecido.

[4] A Escola de Notre Dame de Paris, também conhecida com Escola da Polifonia, refere-se a um grupo de músicos e compositores que trabalhavam na área geográfica da Catedral e que testavam as suas composições polifónicas nos órgãos daquela igreja.

[5] Johannes de Garlândia (1270- 1320) foi um teórico da música, instrumentista e Professor na Universidade de Paris. Escreveu dois tratados muito importantes, o “De Mensurabili Musica”  e o “De plana musica”, que são considerados os percursores teóricos da Ars Nova (o estilo musical de todo o séc. XIV). Philipe de Vitry, que escreveu o seminal tratado “Ars Nova”, fê-lo em jeito de glosa do “De Plana Musica”, onde, pela primeira vez, se explora a prática de notação musical para o ritmo, já que, até aí, apenas as variações melódicas tinham notação gráfica. Perceberemos, adiante, onde foi ele buscar esta ideia….