A Celebração Teatral e o Teatro como Celebração

Castro Guedes

Encenador, Director Artístico da Seiva Trupe

In Revista TER 40

Sem estar a repetir pormenores profusamente conhecidos na generalidade da História das origens do teatro, importa apenas lembrar a íntima ligação entre, nos seus primórdios (e não apenas na Grécia), elas se confundirem nas e com as celebrações religiosas para dizer que dessas celebrações, após se autonomizarem as formas especificamente teatrais, se a religiosidade (no sentido mais apertado de evocação do Divino) desaparece da qualidade central do acto, permanece a categoria da celebração. Ele, teatro, é composto de todo um ritual, cujos cânones podem mudar de época para época, de geografia para geografia, mesmo de ideologia para ideologia, gerando estéticas diferentes. A tal ponto que nessas estéticas se opõem o papel atribuído à catarse ou mesmo à emoção ou o da identificação com o real e a verosimilhança (sim ou não) e o muito mais que não importa, aqui e para o efeito, enunciar. Mas importa acrescentar que mesmo a razão de ser ou finalidade do teatro é alvo de interpretações diferentes de acordo com o corpo doutrinário em que se funda o ensaísta.

No entanto, apesar destas diferenças, haverá três aspectos ontológicos que definem toda e qualquer perspectiva de e sobre o teatro. Um é o de ser indispensável a ele a existência de, pelo menos, o actor (o que faz, o fazedor) e o espectador (o que assiste, o observador) e o que o primeiro faz (a acção, o feito). O outro, de certo modo deste decorrente, é a natureza da sua efemeridade e irrepetibilidade, no sentido em que de dia para dia o objecto artístico só tendencialmente é o mesmo. Até porque lhe é imanente a condição da presença humana (coisa implícita na descrição de fazedor-feito-observador) em ‘copresencialidade’ e sem remediação de outro meio, que não o de ser(es) humano(s) em presença de outro(s) ser(es) humano(s). Aliás, é por isso que dizer que houve teatro durante os confinamentos sanitários a que a pandemia da covid 19 nos veio obrigar, não é verdade. O streaming – para já nem falar de vídeo ou cinema – não é teatro, apesar de acontecimento ‘paracénico’ remediado por uma plataforma digital, porque o feito, apesar de (quase) simultâneo para fazedor e observador, não acontece na presença viva de um e outro, o que, em última análise para compreender a diferença, bastaria referir que o ponto de vista (enquadramento) implícito na escolha do feito nega ao observador a escolha do visto, daquilo que é (o) feito, ou seja a orientação do que quer ver. Porém, mais ainda, como o referiu Walter Benjamin, nas artes cénicas há aquele algo indefinível na reacção, pela recepção, que impregna a própria representação, a que chamou a aura. Discutir essa questão seria moroso e excessivo para o espaço e natureza deste artigo, mas basta perguntar a qualquer fazedor se assim o já sentiu ou não para confirmar empiricamente uma evidência. Pelo que o acto teatral (re)constrói-se, de cada vez como objecto (cénico) em novo objecto.

O terceiro aspecto é o facto da acção se revestir de um carácter de celebração no sentido mais amplo da palavra. Pode celebrar a condição política, religiosa, psicológica ou mesmo unicamente a da forma em si, que não deixa de ser celebração. A acção a que um assiste (o espectador, o observador) e o outro faz (o actor, o fazedor) é um acto de celebração, como tal convencionada; ou teríamos que aceitar que um simples atravessar de passeio para passeio observado numa rua era teatro. Não é, de facto, porque não há a intenção de ritualizar, celebrar, acção, o feito, em si. Só quando o feito passa à condição ritual, que se celebra, podemos falar em teatro; mesmo quando queremos referir um aspecto vivencial, alargando o conceito a acções como uma missa, um comício, um evento desportivo, um jogo de recreação, um baptismo, um funeral, um rito maçónico, uma festa popular, um baile… Elas são ‘parateatrais’ porque se revestem do carácter celebrante. Todavia, no sentido mais exacto de arte ou lazer cénico, não são teatro. Ou, dito de uma outra forma, cuja também não é possível estar aqui a expandir, a arte só o é quando é uma representação de uma coisa e não a coisa em si. Um actor a atravessar de um passeio a outro passeio no cenário de um palco, sim, já é teatro. Esse mesmo actor, ao atravessar a rua a caminho de casa não é sequer actor, é uma pessoa não-celebrante.

Pois bem, por isso mesmo, o teatro é (sempre) uma celebração da vida, mesmo quando ritualiza a morte, porque esta não é a oponente da outra, mas justamente a baliza que encerra a vida, iniciada com o acto do nascimento. Mesmo tratando a vida no plano que seja – por exemplos o do social ou do amor ou da ‘sensorialidade’ tão só – é em torno da vida, segundo as suas múltiplas abordagens, que a celebração se realiza. Do mesmo modo em que, no fundo, toda a arte (ou todas as artes) são uma celebração. O que faz delas elemento espiritual do ser(-se) humano e desempenharem um papel educacional (não educativo, porque não há porque ser educador, mas tão só por o ser arte já educa, quanto mais não seja o gosto, enquanto expressão elaborada da sensibilidade). Mas não é certo que assim o seja exactamente em todas as condições em sentido positivo, pois situações há em que a boçalidade ou a propagação de pensamento reprovável que as impregna destroem essa mesma qualidade de elevação sensorial. Todavia, mesmo sem ser arte – quando é apenas lazer ou é mais do que lazer, mas sem a elaboração de execução que a arte impõe – a celebração que evoca e invoca é elemento educacional de, pelo menos, a nossa própria natureza humana, mesmo quando o seja negativamente.

Justamente por tudo isto importa acrescentar que se é certo que o teatro, o jogo teatral, resulta e expressa a necessidade lúdica da celebração (religiosa ou laica), isso não vale a dizer que ele, como expressão autónoma (em arte ou lazer recreativo) exista por si desde que exista organização social. Sociedades houve (e há) em algumas civilizações ou épocas civilizacionais em que o teatro, neste sentido específico de que falámos, não existe e muito menos, em qualquer caso, existe espontaneamente; ou, pelo menos, exista enquanto coisa em si, autónoma, como o constructo que, artisticamente, é. É, de resto, por isso mesmo, que ele torna importante o seu ‘mergulho’ nas raízes da condição vivencial na necessidade da celebração; e, também por isso, importa celebrá-lo como uma aquisição civilizacional.

Assim, em jeito de conclusão, direi que é indispensável a uma civilização humana humanista fazer a celebração do teatro e, por sua vez, o teatro celebrar-se além do fazedor e do feito em si fechados, antes dando a mesma primazia à observação do feito. Quero dizer: o público tem de estar presente em vontade e desejo no acto de fazer(-se) teatro, do mesmo modo que o acto de fazer(-se) teatro tem de estar presente nas necessidades da vontade e desejo do público. Não de forma passiva, porque ao fazedor importa a escolha do feito e não o fazer necessariamente o que o observador já conhece e gosta, mas diria mesmo que antes pelo contrário, trazendo-lhe a novidade, suscitando-lhe o espanto. Estes são os principais desideratos contemporâneos a conjugar, quando a impermanência e de liquidez social (e ética) deformam a própria consciência do nós, quando não do eu, só aparentemente superlativizado.